Terrifier: Uma Franquia de Slasher Pós-Moderna
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*Por Joaquim Dantas
Com a chegada de Terrifier 3 (2024) aos cinemas, o diretor Damien Leon parece ter conseguido realizar completamente, e de maneira absolutamente brilhante, um dos grandes fetiches da atualidade: ressuscitar e brincar de ventríloquo com o cadáver gliterizado e ensanguentado dos anos 1980. E como ele fez isso? A partir de uma simples – mas brilhantemente criativa – recalibragem do gênero slasher.
Mas antes de qualquer coisa, acho que a gente precisa ter ciência de que, ao contrário do que diz o senso comum, Terrifier não é uma franquia tradicional como Halloween, Sexta-Feira 13, A Hora do Pesadelo ou até mesmo Pânico. Terrifier é, na verdade, uma obra slasher da pós-modernidade – essa época tão autorreflexiva e desarticulada.
Mas, como diria Jack, o estripador, vamos por partes. Quando John Carpenter criou Halloween: A Noite do Terror (1978), ele não criou uma fórmula: ele fez um filme! Pode até ser que, hoje em dia, um espectador mais desavisado, ao assistir a essa obra seminal, pense encontrar nela os tropos que constituem o gênero slasher: os protagonistas jovens adultos, o ponto de vista do assassino mascarado, a resiliente final girl etc. No entanto, esse não é o caso. Obra formadora de discursividade? Sim. Formulaica? Longe disso.
Embora seja verdade que Carpenter tenha amalgamado muitos desses elementos em seu filme, ali eles não eram uma fórmula; eram simplesmente beats de uma versão modernizada do suspense hitchcockiano. Esses elementos só vieram a se tornar formulaicos quando passaram a ser replicados. E o grande responsável pela popularização e massificação dessa fórmula foi Sean S. Cunningham.
Em meados de 1979, Cunningham pediu a Victor Miller para escrever um roteiro literalmente decupado da obra de Carpenter, tentando criar a sua própria versão do blockbuster de horror baixo orçamento. Nessa brincadeirinha, ele acabou cunhando o modelo sobre o qual uma pletora incalculável de filmes iria se erguer. É assim que, do pastiche de Halloween, surge Sexta-Feira 13 (1980). A partir desse procedimento, nasce a fórmula do cinema slasher.
Ok…, mas e quanto a Terrifier? Se os filmes de Damien Leone são claramente versões requentadas desse tipo de narrativa, por que afirmar que essa não é uma franquia tradicional? Porque Terrifier não é só um pastiche (como o foi Sexta-Feira 13) – é o pastiche do pastiche! E, mais que isso, é uma franquia que usa o próprio ato de fazer pastiche como recurso estético. E aí está o modelo do slasher pós-moderno.
Quando Cunningham criou o whodunnit em Crystal Lake, ele não criou uma franquia: ele fez um rip-off de um filme! No entanto, 9 filmes e 1 refilmagem depois, temos uma franquia. O interessante sobre filmes slasher é que, num geral, elas também parecem seguir, em si, uma estrutura recorrente. Ou seja, existem duas fórmulas: a do filme e a da franquia slasher.
Do mesmo modo que Leone criou o pastiche do pastiche slasher, o diretor também criou com Terrifier o pastiche do pastiche da franquia slasher! Vejamos então em que consiste a fórmula clássica das franquias.
Primeiro, você tenta manter a normalidade: Halloween 2 (1981) se passa na mesma noite do primeiro filme; Sexta-Feira 13: Parte 02 (1981), 03 (1982) e O Capítulo Final (1984) retratam uma mesma ininterrupta matança. Chucky persegue Andy em Brinquedo Assassino da primeira (1988) à terceira parte (1991). A lista segue e a mesma lógica é válida para a “natureza” dos vilões: Michael Myers tem a mesma agenda assassina até pelo menos parte de Halloween 5: A Vingança de Michael Myers (1989). Jason só ressuscita mesmo – ou seja, deixa de ser um assassino humano minimamente “verossímil” – no começo de O Capítulo Final etc.
É aí que, quando a fórmula original começa a perder o verniz, o pessoal aponta para o absurdo e atira. Entra a fase “satanás impera” das franquias.
Normalmente, é introduzida alguma das seguintes categorias. Se não já houver de início, aparecem elementos sobrenaturais: ver a “versão zumbi” de Jason, a partir da Jason Vive (1986). Em alguns casos, os vilões vão parar no espaço, de alguma forma inexplicável: Hellraiser 4: A Herança Maldita (1996) e Jason X (2001). Uma terceira possibilidade é a introdução de alguma relação familiar imprevista, vide A Noiva (1998) e O Filho de Chucky (2004). Às vezes também aparece uma gostosa dose de autoironia: o “humor vermelho” de O Massacre da Serra Elétrica 2 (1986) é um perturbador exemplo. Um adendo. Se a franquia resistir tempo o suficiente, ela entra em sua quarta fase, onde aparece a metanarrativa, como em O Retorno de Freddy Krueger (1994), o reboot Halloween H20 (1998) e a “sequência de legado” Halloween (2018). Isso sem falar nos remakes, é claro.
Retornemos agora àquela franquia slasher pós-moderna. Em Terrifier (2016), a premissa básica do que viria a se tornar uma longa, ultraviolenta e surreal trama slasher episódica nos é apresentada. Entra Art, o palhaço. Numa noite de Halloween, por nenhuma razão aparente, esse sujeitinho asqueroso, que mistura a mudez assassina de Jason ao sarcasmo irônico de Freddy Krueger – seu rosto pintado emula, a um só passo, os dois monstros icônicos (o rosto deformado e a máscara anônima) –, persegue, tortura e mata jovens beldades fantasiadas.
Esse primeiro filme tem um ritmo estagnado. Não fosse a atuação de David Howard Thorton, como Art, que possui um estranho e carismático magnetismo, Terrifier seria esquecível. Fica claro de cara que essa é a obra de um artista em formação. Mas, ao mesmo tempo, também fica claro que o que faltava a Leone em suspense e elegância, sobrava em brutalidade visual – os efeitos práticos desse troço são um deleite. Mais que slasher, esse filme parece um torture porn tardio. Soa vazio, pintado por um niilismo de supermercado e meramente formulaico.
Até que, em 2022, surge Terrifier 2. Eu perdi o barco de ver o filme no cinema e acabei fazendo uma dobradinha em casa mesmo. E, meus amigos, que evento transformador! No fim dessa maratona de 4 horas de sangue, tripas e surrealismo, eu me converti de levemente indiferente a incondicionalmente apaixonado pela franquia.
Em Terrifier 2, Leone apresenta um domínio muito maior do artifício, enquanto David Howard Thorton, ainda mais confortável e carismático, continua sendo o ponto forte do filme. Outro destaque é a interpretação verdadeiramente cativante de Lauren LaVera (Sienna Shaw), que segura muito bem as duas horas e vinte de filme. A narrativa se desenvolve bem… Até que uma cena absurdamente retumbante explode no meio do terceiro ato e o negócio vai de bom pra que-Diabo-é-isso?! Depois que Sienna sai voando de dentro de uma caixa de vidro submersa sobrenatural, empunhando uma espada mística do apocalipse, tudo que tinha acontecido antes, em ambos os filmes, todos os beats da história, todas as escolhas estéticas foram ressignificadas para mim! Com ambos os filmes, Damien Leone não simplesmente requentou a fórmula slasher, ele recalibrou o jogo todo, condensando a fórmula de uma franquia inteira dentro de apenas dois filmes!
Pense nisso. Terrifier representa, em quase toda sua duração, não o primeiro, mas os primeiros filmes de uma franquia. Um assassino anônimo e sádico persegue suas vítimas e dilacera geral: é Sexta-Feira 13 da primeira à terceira parte, é Halloween do segundo ao quarto filme – e é também Dia dos Namorados Macabro (1981), Chamas da Morte [1981], Violência e Terror (1989) e um milhão de outros slashers que não tiveram continuações.
No entanto, nos momentos finais desse primeiro filme, Leone adiciona um elemento que, a priori, parecia ser somente um descartável susto final: Art, o palhaço, que era só mais um assassino serial descolado, morre… e é ressuscitado por alguma força maligna sobrenatural! Ou seja, dentro de uma mesma obra, Leone foi da primeira à segunda fase da fórmula das franquias – a fase “satanás impera”. E isso fica ainda mais evidente quando, desde o início de Terrifier 2, o cineasta compra o tíquete do surrealismo sobrenatural e deixa a loucura correr solta.
O palhaço não só aparece agora acompanhado por uma entidade metafísica demoníaca, na forma de uma palhacinha horripilante, como passa a ter uma força e uma fisicalidade impossíveis. A matança que se segue cobre dois terços do segundo filme… até a apoteose da cena retumbante que eu comentei há pouco. É aí que o filme salta de Sexta-Feira 13: O Capítulo Final direto pra Jason Vai Para o Inferno! Sem lei, sem limites, sem dignidade! Essa deliciosa e irresponsável película literalmente acaba com a última sobrevivente mutilada do primeiro filme DANDO A LUZ À CABEÇA DECEPADA de Art! Quer dizer, né…
Chegamos então a Terrifier 3, um filme que, por definição epistemológica, é uma ruptura das fórmulas. Em termos de estrutura narrativa, Damien Leone expande sua mitologia e, ao mesmo tempo, entrega exatamente o que o grande público espera de um filme slasher; mas em termos de surrealismo imagético… Meu irmão, ele eleva o jogo a níveis astronômicos!
O filme começa imediatamente depois do anterior, com o corpo decapitado de Art pegando um ônibus (!) e indo encontrar sua cabeça renascida no manicômio. O diretor também faz retornar ao centro a personagem Victoria Heyes, que é a final girl ainda do primeiro filme, mas que agora vira a side kick zumbi possuída de Art – levando a cabo uma viravolta nunca realizada nas franquias slasher: é Tommy Jarvis no final de Sexta-Feira 13: Parte 04 e a pequena Jamie Lloyd no final de Halloween: Parte 04. Isso sem falar nas cenas envolvendo masturbação feminina com um caco de vidro, assassinato via rato socado garganta adentro, um buraco sobrenatural que leva direto pro Inferno… Como diz o ditado: quem tem limite é município.
E aqui, talvez pela primeira vez na franquia, a narrativa ganha tons alegóricos, tornando-se, portanto, mais complexa. Em Terrifier 3, o tema natalino não é só estilo, mas conteúdo. Pense bem: Art, que já aparece fantasiado com um traje vermelho e branco característico no cartaz, é um cadáver ressuscitado que renasce de uma relação sobrenatural e não-sexual. Ou seja, de uma só tacada, Art é uma versão subversiva, sanguinolenta e niilista de Papai Noel e Jesus Cristo! Há uma equação irônica que se forma: Noel roubou a simbologia do Natal de Cristo. E aí Art veio e roubou a alegria natalina desses dois, fazendo pirraça com a tradição e transformando a mitologia em uma festa gore sem inocência e sem sacralidade.
E para onde vai a coisa agora? Como diz uma máxima filosófica antiga: do absurdo, tudo se segue. Leone dobrou as fórmulas – do filme e do slasher – até seus limites previsíveis. Terrifier 4, que já foi confirmado, pode ir para o Inferno – literalmente –, mas também pode ir pro espaço, voltar no tempo ou ser uma metanarrativa. Ou, como diria o Monty Python: and now, for something completely different. Satanás, efetivamente, impera!
E sobre Terrifier 3, a conclusão para mim é óbvia. Somos nós, fãs de filme de gênero, moldando o feriado a nosso bel prazer. Nós, que preferimos assistir a Gremlins (1984), Duro de Matar (1988) ou virtualmente qualquer filme do Shane Black no Natal ao invés de A Felicidade Não Se Compra (1946), Uma História de Natal (1983) ou Esqueceram de Mim (1990). Capra é um gênio, não se discute, Kevin McCallister é legal… Mas você já ouviu falar em Art, o palhaço?!
Joaquim Dantas e Juscelino Neco são responsáveis pelo Selvagem Podcast, disponível em todos os agregadores. Juscelino é autor de Em Perfeito Estado, Reanimator, Zumbis para Colorir, Matadouro de Unicórnios e Parafusos, Zumbis e Monstros do Espaço.
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