Um saravá (salve!) para as africanas e os africanos que chegaram pelo Valongo
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Leia a seguir o posfácio de Valongo
Por Silvana Jeha
Este quadrinho é uma ficção baseada em fatos reais. Escrever sobre o passado, seja imaginando ou dentro da disciplina da História, é sempre uma responsabilidade enorme diante dos mortos e seus descendentes.
A história foi fabulada por uma historiadora e um artista visual. A africana Zola, ou Maria Cabinda, não existiu, mas foi inspirada em diversas mulheres que atravessaram a escravidão. A primeira delas foi Rita Maria da Conceição que deu à luz o seu filho Manoel dentro de um navio negreiro, vindo de Cabinda e aportado no Valongo, história real contada por Juliana Barreto Farias1. O nome Zola, que significa amor em várias línguas Bantu, foi sugerido pela antropóloga Rosa Vieira, pesquisadora da extração de vinho de palma na região da floresta do Mayombe na República Democrática do Congo. Escolhi essa região como origem para Zola, porque há registros de pessoas listadas como Mayombe que vieram escravizadas para o Brasil pelo porto de Cabinda. Vieira também sugeriu a palavra “Kitoko”, dita quando o bebê Maithica nasceu no navio. Essa palavra quer dizer maravilhoso, beleza em várias línguas faladas naquele país. Textos do historiador Robert Slenes foram fundamentais para temas tratados no quadrinho. Tanto o ritual que Zola participa no quilombo, quanto o plantio da árvore Nsanda no Valongo, foram inspirados em suas pesquisas2. No Valongo desembarcaram uma maioria de pessoas nascidas na África centro-ocidental, também conhecida como a grande região Congo/Angola. Por isso que a invenção da vida de Zola é baseada em cosmogonias daquela parte da África, especialmente da região do Mayombe, que fica principalmente na República Democrática do Congo, mas também na província de Cabinda de Angola. Da literatura diáspora africana nos inspiramos também em Amada de Toni Morrinson e Perder a mãe. Uma jornada pela rota atlântica da escravidão de Saidiya Hartman.
Textos de história e arqueologia sobre o Valongo e o tráfico de escravizados, além da iconografia da época, foram fundamentais para inventar esse quadrinho. Alguns desses pesquisadores, relacionados na bibliografia, nos ensinaram a olhar para o Valongo como um complexo: o cais, o cemitério, o lazareto e a rua do Valongo onde ficavam os armazéns de venda das pessoas escravizadas. Mas como se trata de uma ficção inventamos por exemplo a cena do batizado feito ali. Não há registros de batizados no Valongo até onde alcançamos. Mas era esse o meio pelo qual os nomes originais dos africanos eram apagados por novos nomes compulsoriamente dados pelos colonizadores.
Na década de 1770, o local de desembarque de africanos escravizados no Rio de Janeiro foi transferida da atual Avenida Primeiro de Março, para a região do Valongo, atualmente o bairro da Saúde. Segundo dados do site Slave Voyages, entre 1774 e 1811 são mais ou menos 500 mil escravizados chegados na cidade. Em 1811, o cais – cujas partes podem ser vistas no sítio arqueológico aberto no Centro do Rio – começou a ser construído e por ali desembarcaram em torno de 500 mil pessoas até 1831 quando o tráfico legal de escravizados foi encerrado. Calcula-se, portanto, cerca de um milhão de africanos que chegaram entre 1774 e 1831 no Complexo do Valongo. Desde então, até meados da década de 1850, os africanos foram desembarcados clandestinamente em diversos locais da costa brasileira.
Em 1843, as pedras do cais do Valongo foram cobertas por outras pedras. O lugar foi renovado para receber a Imperatriz Teresa Cristina, esposa de Dom Pedro II, e passou a ser chamado de Cais da Imperatriz. Ao longo do século XIX e em algum grau até hoje, promoveu-se um esquecimento desse complexo do tráfico escravista. Novamente nas reformas urbanas do início do século XX, uma nova camada se sobrepôs aos dois cais e um aterro de mais de 300 metros foi feito sobre o mar para ampliação da área portuária carioca. E é por isso que o sítio arqueológico do Cais do Valongo não fica hoje em dia na beira do mar.
Em 2011, num novo contexto de grandes obras da região, o chamado projeto Porto Maravilha, arqueólogos encontraram trechos do Cais do Valongo. Devido à reinvindicação dos movimentos negros, a Prefeitura do Rio entre 2012 e 2014 “transformou o espaço em monumento preservado e aberto à visitação pública”, patrimônio cultural da cidade, e um decreto instituiu o “Dia da Lavagem simbólica do Cais do Valongo”3 todo ano, num sábado do mês de julho. Este ritual anual inspirou o modo como terminamos essa história. Em 2017, o Cais do Valongo foi declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
Em 1996, durante a reforma de uma casa de família na Rua Pedro Ernesto próximo do cais, os proprietários encontraram ossadas que depois descobriu-se serem remanescentes do antigo Cemitério dos Pretos Novos, ou seja, dos africanos que morriam após a travessia. O sítio arqueológico passou a se chamar Instituto dos Pretos Novos, onde podem ser vistas algumas ossadas, além de ter se tornado um centro de memória desta história. Para completar o complexo do Valongo, o chamado Lazareto, construído em 1810, onde os africanos doentes depois da travessia ficavam de quarentena, era situado em algum lugar do atual bairro da Gamboa, próximo da antiga praia do mesmo nome.
Para criar esta história, além de estudar a bibliografia e iconografia disponível, tanto sobre o Brasil como sobre a África, consultamos sambas enredos, pontos de macumba, canções de jongo e umbanda, poemas, provérbios kongo-bantu traduzidos por Tiganá S.N. dos Santos, para incorporar uma polifonia memorial dos ancestrais da maior parte da população brasileira.
O Valongo foi o maior porto de chegadas de africanos escravizados de toda a história das Américas. Do Valongo partiam, a pé ou de navio, escravizados para diversos pontos das regiões Sul e Sudeste do Brasil. Assim ele se constitui tanto um portal de sofrimento quanto uma encruzilhada. E hoje é ressignificado por diversos grupos sociais como um lugar de memória, um marco para pensar um futuro melhor para os que ainda sofrem os flagelos materiais e simbólicos que a escravidão produziu.
A região atual onde estava situado o Complexo do Valongo é chamada há mais de um século de Pequena África, expressão sacramentada por Heitor dos Prazeres, porque mesmo depois da abolição da escravatura, na passagem do século XIX para o XX, a população da Saúde e a Gamboa, era composta majoritariamente por afrodescendentes. Ali existe a famosa Pedra do Sal e existiu o terreiro de Tia Ciata; ali foi criado por Hilário Jovino o rancho carnavalesco Reis de Ouro, um dos eventos fundantes do atual carnaval carioca; ali moravam e moram, circularam e circulam, estivadores, operárias e operários, lavadeiras, artistas, empregadas domésticas, marinheiros, prostitutas e tantos outros personagens que firmaram a cultura carioca.
Ali, em 1839, na ladeira do Livramento, rua exatamente em frente ao Cais do Valongo, nasceu um dos escritores mais importantes do Brasil, Joaquim Maria Machado de Assis, neto ou bisneto de africanos escravizados que provavelmente chegaram no Valongo. É ele o Quincas de nossa história. É dele o conto “O caso da vara” que inspirou a passagem do castigo do menino Maithica, é ele que nos contou as ervas usadas por um curandeiro negro no século XIX nas proximidades do antigo Valongo.
No tempo da escravidão, diversos quilombos nos arrabaldes do Rio de Janeiro representavam uma das formas de resistência ao cativeiro. Lugares como a atual praia do Leblon, o fundo da baía de Guanabara e a Floresta da Tijuca abrigaram quilombos. A escravidão imperou na cidade e no país, mas sempre rodeada de territórios quilombolas, muitos dos quais existem até hoje.
Não por acaso a personagem Zola, além de ganhar a vida como quitandeira, é curandeira. O Valongo é uma “ferida que nunca deixou de sangrar” como diz o samba enredo de 2019 da escola de Samba Vila de Santa Tereza. Curá-la implica no seu reconhecimento, cuidando dessas lembranças amargas com todo tipo de expressão: arte, manifestações na rua, circuitos de memória, pesquisa histórica e arqueológica…
Seja reunidas nos terreiros, ou nas suas orações, muitas pessoas pedem às almas, aos Orixás e outras deidades, auxílio na tarefa dolorosa de lidar com um passado tão nefasto que deixou marcas indeléveis na sociedade brasileira. Por isso Zola pode ser também Vovó Cambinda, uma entidade de religiões de matriz africana muito cultuada que “baixa” nos terreiros para ajudar quem sofre, continuando a concepção de comunidade dos povos bantu: “a comunidade é a reunião dos vivos e dos mortos”.
Assim apresentamos nossa história, região portuária, cais, lazareto, cemitério, escravidão, quilombo, luta, dor, cura. E nos juntamos a uma legião de pessoas e grupos que encaram esse passado, para que todas as mazelas produzidas pelo legado da escravidão deixem de existir na nossa projeção de futuro, alimentada pela esperança e lutas cotidianas, entre elas a memória.
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