v-de-veneta

A 2ª temporada do V de Veneta está disponível no Youtube. Inscreva-se no nosso canal!

Endereço: Rua Araújo, 124, 1º Andar, São Paulo          Tel.: +55 (11) 3211-1233          Horário: Seg. à Sex., das 9h às 19h.

Ayako: a história do Japão no pós-guerra contada por seu maior quadrinista

Siga-nos

Confira trecho do prefácio de Ayako, de Osamu Tezuka, escrito pelo editor Rogério de Campos; livro chega ao mercado na segunda quinzena de fevereiro e já está em pré-venda na Amazon, Comic House, Comix e Ugra

 

Por Rogério de Campos *

Ilustrações: Ozamu Tezuka, trechos de AYAKO

 

Em 1967, O Partido Liberal Democrata japonês criou o Seishōnen Taisaku Honbu, um departamento policial encarregado de monitorar os mangás no país. Também criou uma lista negra de quadrinhos e passou a incentivar e a se alimentar de grupos religiosos e associações de pais em campanha contra editoras que publicavam quadrinhos “tóxicos” e as livrarias que os distribuíam. A justificativa declarada era conter os “excessos” de violência e erotismo dos mangás, mas o objetivo claro era acabar com a liberdade que reinava nos quadrinhos japoneses. Em algum momento dos anos 1960, os moralistas resolveram contrapor os novos quadrinhos adultos aos quadrinhos “sadios”, aos mangás de Osamu Tezuka, o “Walt Disney japonês”.

A influência da Disney sobre Tezuka é admitida com entusiasmo pelo próprio mangaka. Mas as diferenças entre um e outro saltam à vista. Para começar, enquanto Tezuka era um desenhista impressionantemente prolífero e criativo, Disney mal desenhava, nem mesmo sua famosa assinatura é criação dele. Disney foi um empresário. Tezuka, mais que tudo, foi um artista. E enquanto Disney colocava “sua” assinatura em histórias em quadrinhos produzidas por artistas anônimos, seu fã japonês era um grande incentivador de novos autores. Por fim, é bem sabido que, quando o macarthismo invadiu Hollywood, Disney foi correndo se oferecer como dedo-duro na caça aos comunistas. Tezuka, quando o movimento de censura aos quadrinhos ficou mais forte, saiu em defesa dos gekiga (quadrinhos adultos que falavam de crimes, de injustiça social, de sexo e outros temas raros nos mangás das grandes editoras). Falou publicamente e diversas vezes contra a censura e pelo direito dos quadrinhos tratarem de todos os temas. Foi além: em 1967, criou uma revista, a COM, na qual os jovens e veteranos mangaka podiam fazer suas experimentações e tratar, com total liberdade, de todos os tipos de temas, inclusive sexo[1]. O editorial é quase um manifesto político:

Dizem que esta é a Era de Ouro dos mangás. Mas, então, porque tantos trabalhos excepcionais não têm como ser publicados? A verdade é que muitos mangaka se matam de trabalhar, são forçados à servidão, à submissão e às cruéis exigências do comercialismo. Com esta revista, mostrarei o que é o verdadeiro mangá narrativo. COM é a revista dos camaradas que amam os mangás.

E Tezuka decidiu que ele mesmo iria fazer quadrinhos adultos “sujos”.  Esse movimento, nos anos 1960, tem base no seu desejo de ver os quadrinhos serem reconhecidos como uma linguagem capaz de retratar todos os aspectos do mundo (inclusive os mais terríveis). Mas também tem base na sua urgência em usar suas ferramentas contra uma inimiga que ele vê criar músculos: a guerra. A partir da segunda metade da década de 1960, o pacifismo, que já estava presente em suas primeiras criações, fala mais alto, contra os bombardeios norte-americanos no Vietnã e contra o militarismo japonês que tenta mostrar suas garras novamente.

Tezuka viveu a Segunda Guerra Mundial. Quando criança, penou quando sua escola se transformou em uma espécie de campo de treinamento militar, e sentiu na pele os mal tratos cometidos pelos militares contra a população civil. À época, por causa dos exercícios militares, ficou bem doente. Em setembro de 1944, as aulas foram canceladas e Tezuka, junto de seus colegas de escola, foi obrigado a trabalhar em uma fábrica de armas em ōsaka. Apelidado de “Anão”, estava longe de ser um entusiasta do tal trabalho e dos exercícios militares, e por isso era castigado constantemente. Um dos castigos era ficar na torre de vigia. De lá, viu os aviões norte-americanos se aproximando:

Quando a sirene gritou avisando do ataque aéreo, vi o esquadrão de bombardeiros dos Estados Unidos vindo em nossa direção. Seguiam a linha do rio Yodogawa. Mal tive tempo de raciocinar, e assim que pensei “eles vieram”, bombas incendiárias caíram sobre nós. O barulho era como o de uma chuva forte. Achei que iria morrer, exposto no topo da torre de vigia. Uma bomba passou a dois metros de mim e atingiu o telhado que estava logo abaixo. Mais tarde, soube que essa bomba matou todas as pessoas que haviam corrido para o abrigo antiaéreo que havia debaixo desse prédio. Desci a torre de vigia gritando feito um louco. Ao meu redor, o chão era um mar de fogo […] as casas em volta pegavam fogo, crepitando. Então, caiu a chuva misturada com cinzas. Caminhei até o rio, vendo as crateras abertas pelas bombas onde se amontoavam objetos que se assemelhavam a pedaços de seres humanos e que eram, de fato, pedaços de seres humanos!

Podemos tentar traduzir o horror em números: 57% da cidade de ōsaka foi destruída nessa sequência de ataques. Dez mil pessoas morreram; mulheres e crianças eram a maioria. Em apenas uma das noites, foram despejadas sobre a cidade 70 mil bombas incendiárias. Quantos foram os mutilados? Quantas crianças ficaram órfãs? Quantos pais perderam seus filhos?

Na sequência da rendição japonesa, Tezuka passou fome, como a maioria da população, viu a brutalidade das Forças de Ocupação, e, em certa ocasião, apanhou na rua de soldados norte-americanos porque isso simplesmente os divertia.

A Guerra do Vietnã fez reavivar essas memórias e a indignação. E essa indignação passa a estar presente em seus mangás. Até mesmo suas HQs para crianças tratam do assunto. Tsuiraku-ki, uma história curta publicada em 1969 na revista infanto-juvenil Shonen Champion, fala, por exemplo, da fabricação artificial de heróis pela máquina de propaganda militar. Conta a história de um piloto que é morto pelos seus superiores militares, porque já havia sido dado como morto e transformado em herói de guerra.

Ayako começa quando a Guerra acabou. Não mostra batalhas e não fala das pessoas que passavam fome nas ruas do país. Fala das elites: a aristocracia rural, a alta burocracia, os ricos, os líderes políticos nacionais… Aqueles que nunca passam fome, mas que representam tão bem certo tipo de miséria, a moral. A hipocrisia e o cínico egoísmo com que, por trás da pompa e do suposto respeito às tradições, vão se acomodando confortavelmente em todas as situações.  Assim como lucraram com a guerra, lucram colaborando com as Forças de Ocupação e vão lucrar depois, vendendo pedaços do Estado para a Yakuza. Ayako é a grande história do Japão pós-guerra contada pelo maior de seus quadrinistas.

Ayako foi publicada originalmente em capítulos na revista Big Comic. Estreou na edição lançada no dia 25 de janeiro de 1972, ou seja, no dia seguinte à descoberta do sargento Shōichi Yokoi na ilha de Guam. Os parentes de Yokoi contam que ele jamais se adaptou ao novo Japão. Tinha saudades de Guam e tornou-se um pacifista. Mas permaneceu como o símbolo do heroico guerreiro que, enterrado, espera a hora da voltar a matar. A esse símbolo, Tezuka contrapõe a menina Ayako, uma vida que quer apenas voltar a viver.

 

Compre o seu exemplar na pré-venda:  Amazon,  Comic House, ComixUgra

 

* Rogério de Campos é diretor editorial da Veneta e autor de IMAGERIA, O NASCIMENTO DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, O LIVRO DOS SANTOS E REVANCHISMO

 

 

 

[1] Katsuhiro Otomo, criador de Akira, foi um dos jovens quadrinistas amadores que estrearam na COM.

Você também vai gostar

Leia trecho do livro 68 – Como incendiar um país, de Maria Teresa Mhereb e Erick Corrêa (org.) *Por Maria Teresa...
Leia o posfácio da nova edição de CUMBE, que também traz desenhos e esboços inéditos Texto e ilustrações: Marcelo D’Salete (cenas...
Leia o posfácio de Asa Quebrada, de Altarriba e Kim, em que o roteirista Antonio Altarriba escreve sobre o processo...
Por Rogério de Campos* Ilustração: Massimo Mattioli, em Squeak the mouse “O rato. Um típico personagem que já pintou nas...