Tony Bennett, editor de Jerusalém, comenta o processo criativo de Alan Moore e a tarefa de edição da obra
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Em entrevista ao jornalista Ramon Vitral, o editor fala sobre seu trabalho com Moore e sintetiza o que ele considera os méritos de Jerusalém.
Por Ramon Vitral*
Perdi as contas de quantas vezes já assisti ao vídeo Jeffrey Lewis The Story of Alan Moore. Como diz o título, trata-se da história de vida do Alan Moore em versão cantada e ilustrada pelo músico e quadrinista Jeffrey Lewis. Autor de uma HQ chamada Fuff, ele já se apresentou com músicos como Daniel Johnston e Stephen Malkmus. O clipe dele sobre o autor de Do Inferno e Jerusalém foi compartilhado com o mundo há quase 11 anos, no dia em que Moore completou 60 anos.
“Hoje é 18 de novembro de 2013 e essa é a história do Alan Moore”, avisa Lewis antes de começar a cantar e mostrar seus desenhos retratando a vida do escritor. Saca só o vídeo aqui.
Segue a minha tradução livre dos primeiros minutos: “Alan Moore vive em Northampton, Inglaterra, onde nasceu em novembro de 1953. Ele era um looser leitor de quadrinhos e um adolescente viciado em drogas, acabou expulso [do colégio] por vender LSD para os estudantes. Aos 19 ele estava falido e casado. Limpar banheiros era o emprego que restava. A coisa ficou mais desesperadora, ele começou a fazer quadrinhos, o emprego menos digno na face da Terra”.
Foi mais ou menos por aí, fim dos anos 1970, com Moore começando sua carreira no “emprego menos digno na face da Terra”, que ele conheceu o editor Tony Bennett. Antes de Miracleman, V de Vingança, Monstro do Pântano e Watchmen.
Bennett fundou a editora Knockabout Press em 1975. Nas últimas décadas ele publicou Gilbert Shelton, Hunt Emerson, Neil Gaiman, Robert e Aline Crumb, Melinda Gebbie, Eddie Campbell, Brian Bolland, Dave McKean, Martin Rowson, Paco Roca e muitos outros. Também editou alguns dos trabalhos mais pessoais de Alan Moore: Do Inferno, Lost Girls, os volumes mais recentes de A Liga Extraordinária, a revista Dodgem Logic. E, mais recentemente, Jerusalém. Na avaliação do editor, o livro, às vésperas de sua publicação pela Veneta, é a “obra-prima” de Moore.
Jerusalém tem previsão de lançamento para outubro de 2024, com tradução de Marina Della Valle. As mais de 1600 páginas da obra serão divididas em três volumes (Os Boroughs, Almumana e O Inquérito de Vernal), lançados em conjunto.
“Acho que é a sua obra-prima, na qual suas ideias e pensamentos são compartilhados com o mundo”, sintetizou Bennett quando perguntei a ele sobre o significado de Jerusalém na vasta bibliografia de Alan Moore.
O jornal inglês The Guardian também não poupou elogios: “Brilho e perplexidade colidem nesta história quase visionária de memórias recuperadas, arte e loucura.”
Ideias marginalizadas
“Conheço o Alan desde o final dos anos 1970”, me disse Bennett. “Ele trabalhava principalmente no gênero super-heróis/fantasia/ficção científica naquela época, embora tivesse grande interesse em outros tipos de literatura ‘underground’. Ele escreveu alguns contos para Knockabout na década de 1980, em nossas antologias, e em [coletâneas como] Histórias Constrangedoras do Velho Testamento e Seven Deadly Sins. Quando Do Inferno estava sendo reunido em um volume, o Alan sugeriu que o publicássemos no Reino Unido (como uma coprodução com a [editora] Top Shelf nos EUA). Continuamos esse relacionamento com a Liga Extraordinária, Lost Girls e outros”.
A Knockabout talvez seja a grande casa editorial de Moore em seu país natal. O encontro entre ele e Bennett no fim dos anos 1970 potencializou o alcance dos trabalhos de ambos.
O editor me contou sobre o início das atividades da editora: “Sátira e humor sempre foram grande parte do que produzimos, além de livros que tratam de pessoas e ideias marginalizadas. Há 50 anos, também publicávamos títulos sobre subsistência, guias de cultivo de maconha e outras informações sobre drogas, bem como Fabulous Furry Freak Brothers [de Gilbert Shelton]”.
Ele também falou sobre a atual linha editorial da Knockabout: “Sempre estive envolvido com a ‘contracultura’ desde a década de 1960. O mundo está certamente mudando para uma forma de pensar mais repressiva em muitos países e suspeito que acabaremos vendo mais censura e leis intolerantes. No entanto, continuaremos a publicar livros que entretêm, informam e talvez ajudem as pessoas a ver as coisas de forma diferente”.
Matryoshka de cinco dimensões
É difícil imaginar outra obra tão coerente com a linha editorial da Knockabout quanto Jerusalém – principalmente no que diz respeito ao “ajudar as pessoas a ver as coisas de forma diferente”.
A obra foi originalmente publicada em 2016. É difícil uma sinopse, mas vou tentar: o livro é ambientado na mais antiga vizinhança de Northampton, ao longo de vários séculos. São 35 capítulos, narrados em diferentes discursos – como poemas e peças, por exemplo. Um trecho tem Moore reproduzindo o estilo literário de James Joyce, em outro ele escreve como Samuel Beckett. O protagonista é o artista Alma Warren, empenhado em acessar as memórias de seu irmão em um episódio de quase-morte para a concepção de uma exposição de uma galeria de Northampton.
Com alguns anos de experiência como leitor de Moore, me sinto sempre atraído pelas tramas de seus livros, mas também já aprendi que não são exatamente nelas que acontece a mágica do autor. Bennett concordou comigo.
“A estrutura é um dos seus maiores trunfos”, avaliou o editor. “Em Watchmen, Do Inferno, Liga Extraordinária e seus romances A Voz do Fogo e Jerusalém, você vê sua capacidade de cruzar referências da história ao mesmo tempo em que a história é contada em várias camadas – como bonecas Matryoshka de quatro ou cinco dimensões”.
Ele depois se aprofundou nas comparações entre Jerusalém e o primeiro livro de Moore, originalmente publicado em 1996: “A Voz do Fogo é contado em diversas línguas, desde a pré-história até os tempos modernos. Jerusalém, que foi escrito sobre uma área muito pequena de Northampton, usa a linguagem quase como uma arma ou um bisturi de cirurgião para abrir os olhos e a mente do leitor para novos conceitos”.
Ele sintetiza aquele que considera o mérito maior do livro: “Está na inteligência do conceito, em que o escritor pode produzir alguns capítulos como um poema, uma peça ou uma linguagem joyceana e escrever 35 capítulos, porque precisam ser 35 capítulos, pois correspondem aos 35 itens expostos na exposição de arte que está acontecendo no presente, enquanto lemos o livro – o livro que percorre séculos de tempo e muitos níveis de espaço e ideias, com tudo resolvido no último capítulo”.
Poema sonoro
Tony Bennett foi o responsável pela edição final de Jerusalém, mas não foi o único editor da obra. Ele me explicou que Moore conta com alguns amigos próximos que trabalharam com ele antes que a versão final do livro fosse entregue à Knockabout.
“Como o Alan tem uma habilidade incrível e impressionante de criar livros inteiros em sua cabeça antes de colocar qualquer coisa no papel ou no computador, ele não precisa de muita edição”, me contou o editor sobre suas dinâmicas com o autor.
“Quando comecei a ler o primeiro capítulo de Jerusalém, disse para mim mesmo ‘esta frase tem muitos adjetivos’, e quando terminei aquela frase, fiquei encantado com sua riqueza. A mesma coisa aconteceria com a frase seguinte, o meu cérebro dizia ‘não, não, muitos adjetivos de novo’ e então ‘ah, isso foi uma escrita muito, muito satisfatória’. O Alan teve a ajuda de algumas pessoas maravilhosas para ajudar com o contexto social/histórico e vários de nós ficamos por conta de todos os erros de digitação (bem, espero que tenhamos dado conta!)”.
Bennett também expôs sua alegria com o lançamento do livro em outros países: “Estou muito feliz que esteja saindo em português. Sugeri aos tradutores para o francês e o espanhol que a maneira de entender o capítulo de Lucia Joyce era lê-lo em voz alta ou em voz alta na sua cabeça, se é que você me entende. Foi assim que consegui entender melhor a versão em inglês. Aí, uma espécie de poema sonoro se forma e o sentido fica claro. Não invejo o tradutor de forma alguma”.
De Octopoda ao Occupy
Em 18 de novembro do ano passado, quando Alan Moore completou 70 anos, Jeffrey Lewis compartilhou no Instagram um vídeo dele apresentando ao vivo sua biografia-musical do escritor. O post também conta com fotos mostrando um encontro dele com Moore, com o autor sorridente ao ver as ilustrações celebrando sua vida. Deixo aqui o link para você conferir.
Roubo os trechos finais da canção de Lewis sobre Moore: “Quando ele escreve, fala ou se apresenta, sempre rompe com os padrões, sempre empenhado em fazer algo legal e novo. De Octopoda ao Occupy, todos fazem parte da turma dele. E muitas coisas estranhas que ele disse viraram realidade”.
Oi. Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista, edito o blog Vitralizado, sou autor do livro Vitralizado – HQs e o Mundo (MMarte), e colunista no blog da Veneta. Minha proposta por aqui é garimpar o catálogo da editora, títulos antigos e lançamentos, entrevistar autores, analisar algumas obras, refletir sobre arte e a nossa realidade. Volto em 15 dias. Até!
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