Delírio a Dois e Histeria Coletiva

*Por Juscelino Neco

O ano de 2019 foi marcado por uma série de eventos cataclísmicos: pandemia, isolamento social, negacionismo, fome, Bolsonaro… Era tanta desgraça junta que, em retrospecto, o lançamento do primeiro filme da dualogia Coringa pode até parecer um mal menor. E talvez seja, mas com uma régua tão alta até Triunfo da Vontade (1934) – a clássica peça de propaganda nazista de Leni Riefenstahl – pareceria inofensivo. De qualquer forma, Coringa encarna em seus elementos formais, narrativos e discursivos todas as contradições da guerra cultural que nos atravessa. Senão, vejamos.

Um dos grandes destaques da campanha de marketing de Coringa alardeia o baixo orçamento de míseros 50 milhões de dólares, uma suposta produção independente saída das entranhas de um dos maiores conglomerados de mídia do mundo. Ora, “filme independente da Warner” é uma contradição de termos que só pode ser igualada por platitudes esquizofrênicas como “policial antifascista”, “açougueiro vegano”, “CAC do Greenpeace” e “inteligência militar”.

Também se ressaltou a suposta originalidade de um roteiro inteiramente decupado dos tropos narrativos da Nova Hollywood. Não se dando por satisfeito, é um filmeco com um verniz subversivo feito para incels, libertários e outros dodóis de internet. Em última análise, Coringa parece um filme, mas na verdade trata-se de um grande rebranding patrocinado pelas empresas farmacêuticas no intuito de promover transtornos psíquicos como um substituto para a personalidade. Nesse sentido, essa peça de propaganda/publicidade foi tão efetiva que hoje é praticamente impossível tocar a vida social sem um diagnóstico e uma opinião acerca desse novo filme com a Lady Gaga.

Antes de entrarmos no objeto dessa crítica, o recém-lançado Coringa: Delírio a Dois, gostaria de compartilhar com os leitores uma saborosa anedota acerca do Novo Jornalismo, movimento que, durante os anos 1960, revolucionou a imprensa e nos fez repensar os limites aceitáveis da picaretagem na condução de uma reportagem. Pois bem… em 1965, o elegantíssimo repórter Gay Talese foi encarregado pela revista Esquire para fazer uma entrevista com o principesco Frank Sinatra. O encontro não se deu a contento, de forma que Talese escreveu um perfil original sobre a ausência do astro intitulado “Frank Sinatra está resfriado”. O leitor mais atento já deve ter percebido a essa altura que eu não cometi contra mim mesmo a violência de assistir a Coringa: Delírio a Dois. E ouso dizer que apenas Alexandre de Moraes seria capaz de me submeter à sevícia de ver um musical protagonizado por bonecos de gibi.

Contudo, acredito que a efeméride desse novo filme nos permite pensar sobre essa nova fase do cinema (?) de super-heróis. Chamo carinhosamente essa etapa pós-moderna de dismorfia combinatória. Essa nova metodologia de construção da narrativa fílmica garante a eterna repetição e permanência desse tão amado segmento da vanguarda cinematográfica.

Voltemos ao Coringa original. Conceitualmente, trata-se de uma das falcatruas mais sofisticadas criadas pelos estúdios. Quando eu fazia faculdade de jornalismo lembro que li num desses livros sobre roteiro (não lembro qual, eu bebia muito) que a forma mais fácil de convencer um estúdio a embarcar numa ideia é explicá-la como uma amálgama de outras produções [A Megera Domada, de William Shakespeare (1594) + O Clube dos Cinco, de John Hughes (1985) = 10 Coisas que Eu Odeio em Você, de Gil Junger (1999)] ou um filme colocado em outro contexto [Mad Max, de George Miller (1979) + Água (4,6 bilhões de anos) = Waterworld, de Kevin Reynolds (1995)]. Coringa foi feito dentro dessa fórmula, juntando dois filmes do Martin Scorcese: Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1972). Seguir uma receita certamente é mais fácil que criar uma refeição do zero e até o mais inepto dos barmans consegue misturar cachaça e mel pra fazer uma meladinha. O grande problema de Coringa: Delírio a Dois é que os componentes foram escolhidos sem nenhum critério, por um bêbado desesperado. A mistura de 12 Homens e Uma Sentença, de Sidney Lumet (1957) e Grease: Nos tempos da Brilhantina, de Randal Keisler (1978) é tão indigesta quanto querosene e suco de laranja.

Mas nem tudo está perdido. Acredito que o super-herói é modelo perfeito para essa dismorfia combinatória. Afinal, o próprio conceito do super-herói é baseado nas possibilidades infinitas de reformulações, já que, em princípio, ele não passa de um boneco fantasiado, sem vida interior. O Batman, por exemplo, já foi de tudo: detetive, assassino, psicopata, pai, drogado, vampiro, bilionário, filantropo, burguês safado, gênio, artista marcial, velho pirado, corno… A lista é infinita. O Coringa, por sua vez, leva essa tendência a um outro patamar, já que não existe nenhuma diferença objetiva entre um palhaço e uma pessoa vestida de palhaço.

No fim das contas, vai acontecer um duplo processo de identificação, em que não apenas o ator funciona como vedete do filme, mas a própria personagem, querida e conhecida pelo público, vai despertar interesse. As perspectivas são infinitas. Por exemplo: Matt Murdock, o alter-ego do Demolidor, é brutalmente espancado pelo seu arqui-inimigo Mercenário. No hospital, um brilhante médico salva sua vida, após uma complexa neurocirurgia que acaba também por recuperar sua visão. Como efeito colateral, Murdock começa a ver gente morta o tempo todo. Atormentado pelas visões, nosso herói passa o filme inteiro levando susto atrás de susto até ser ajudado pelo Professor Xavier, que o incentiva a criar uma instituição para jovens fantasmas superdotados. Fiquem no aguardo de Demolidor: Visões do Além, uma mistura explosiva de O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan (1999) e Ao Mestre com Carinho, de James Clavell (1967).

Juscelino Neco caiu no gosto do público com seu humor ácido e escatológico. Suas influências vão desde os filmes de terror B dos anos 1980, passando pelos quadrinhos da EC Comics e os clássicos do underground como Harvey Pekar. Pela Veneta, publicou Em Perfeito Estado (2024), Reanimator (2020), Matadouro de Unicórnios (2016) e Parafusos, Zumbis e Monstros do Espaço (2013).

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