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Prefácio de Filosofia do Mamilo, por Helena Vieira

*Por Helena Vieira

O corpo humano é território constante de mutações e disputas, espetáculo carnal da identidade, sobre quem pesam inúmeras e astuciosas tecnologias de controle, coerção e correção. As fronteiras que delimitam os significados convencionais de indivíduo/corpo, não correspondem apenas aos limites do invólucro carnal, mas também às forças invisíveis e onipresentes da política, do direito, da medicina, da cultura etc. Qualquer força social codifica, constrange e produz corpo.

Isso significa dizer que desde o nascimento, ou até mesmo antes: no ultrassom e no chá de revelação e na compra do enxoval, cada sujeito é imerso em um mundo de relações de poder, tensões e conflitos que irão produzir seu corpo e sua identidade à revelia de si. A maioria das pessoas se adéquam, sentem-se relativamente confortáveis com este corpo pré-discursivamente produzido e imposto como natural. Contudo, como veremos neste livro, e como indica a existência de pessoas transexuais, travestis, não binárias e tantas mais, existem corpos que não cabem de jeito nenhum na norma e que mesmo assim (ou por isso mesmo) se engajam na construção e invenção de outra corporalidade.

A obra que você tem em mãos é uma espécie de epopeia corporal, uma epopeia sem um Ulisses ou um Vasco da Gama, mas com um Kael, que enfrenta o périplo burocrático dos hospitais e planos de saúde, que atravessa o mundo dos assédios, da sua insistência em negar a sua posição desistente de gênero, a qual enfrenta os vazios que as mamas representam em seu corpo e existência.

Quero destacar aqui as ilustrações: o traço de Kael não apenas complementa o texto, mas o transforma em uma experiência visual única. O desenho aqui é mais do que ilustração; ele é uma extensão do corpo narrado, uma materialização dos percursos internos e externos enfrentados pelo autor; percursos e presenças às vezes fantasmáticos e assustadores. A linha do traço revela a complexidade das emoções e dos dilemas vividos, traçando com delicadeza e precisão os contornos de uma história que é, ao mesmo tempo, íntima e universal, no sentido da escrevivência, como proposto por Conceição Evaristo.

O percurso burocrático, narrado com riqueza de detalhes, não alcança apenas o processo jurídico, mas todo um caminho tortuoso que reflete as barreiras impostas a corpos que fogem ao normativo. Esse processo, descrito de forma vívida, ganha novas camadas de significado quando a autora nomeia sua obra de “Filosofia do Mamilo”, provocando e conduzindo os leitores a entenderem que definitivamente: não é só peito. Não é só seio. Não é só mama. O seio, aqui, torna-se não apenas um órgão a ser transformado, mas um símbolo de resistência, de identidade, de luta contra um sistema que tenta disciplinar e controlar.

No caso do relato, logo de início o livro nos conta: seio é também como se denomina o vazio. Ali, as duas mamas, intrusas naquele corpo, traficando significados e desejos que não refletiam a existência narrada, eram vazios adoecedores. “Uma mastectomia eletiva? Mas são tão bonitos”, as transformações transgênero parecem ser sempre entendidas como mutilações. A mastectomia é uma cirurgia que causa resistência social porque o seio não é apenas o seio.

Em nosso mundo, o seio emerge como um símbolo carregado de significados múltiplos e variados. Na psicanálise de Melanie Klein, ele pode ser “seio bom e seio mau”, representando as primeiras experiências de relação com o mundo externo. Para alguns economistas liberais, ele é a “teta do Estado”, metáfora para a dependência do governo. No percurso pessoal de crescimento, largar o peito marca a transição da infância para a vida adulta. E, no contexto do autor, o seio é o ponto de partida para uma reflexão profunda sobre identidade e transformação.

No campo da biologia, o seio é central para a definição da classe Mammalia, na taxonomia de Lineu, que classifica os mamíferos pela presença de glândulas mamárias funcionais. Mas será que essa definição é suficiente para capturar toda a complexidade que o seio carrega? Neste livro, o seio, a mama se torna um campo de batalha em que identidade, poder e controle se entrelaçam de formas tensas e complexas. No universo criado pela autora, as ilustrações e o texto se complementam para provocar o leitor a pensar além do corpo, a questionar o que sabemos sobre gênero, política, justiça, erotismo e medicina. Cada página, cada traço, cada palavra nos conduz a um novo ponto de reflexão, onde o seio é tanto um ponto de partida quanto de chegada. É uma ode à criatividade necessária para sobreviver, como na ocultação do binder, no calor, na dor  ou ainda na realização de sair de peito aberto na rua, na praia.

Neste espaço, o corpo é a filosofia em si. Um campo de batalha, sim, mas também um espaço de criação, de invenção, de novas possibilidades. Um lugar no qual o gênero não é uma camisa de força, mas uma espécie de tango no tablado do devir. Um lugar em que a política do corpo se desdobra em novos modos de ser e viver. E, talvez mais importante, este livro é também uma espécie de manifesto contra o destino natural.

Helena Vieira é transfeminista, escritora e dramaturga. Possui artigos em coletâneas como Explosão Feminista,
organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. 

 

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