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Prefácio da 2ª edição de Armadilha da Identidade, por Asad Haider

Entre as maiores passagens da história do pensamento político está a sugestão de Spinoza, no final do seu prefácio ao Tratado Teológico Político (1670), de que seu livro não deve ser lido. Spinoza também sabia que nem sempre é prudente responder às críticas. A escrita produz efeitos, e o argumento apresentado, por mais sólida que seja a sua lógica ou convincente a evidência que apresenta a seu favor, pode se tornar totalmente irrelevante perto dos efeitos do texto. Em última análise, todo autor tem que confrontar a realidade de que esses efeitos – para não mencionar o próprio texto – não estão sob o seu controle. Na verdade, tentar esclarecer o argumento através de debate pode acabar obscurecendo-o ainda mais. Convicções apaixonadas só podem ser combatidas por outras mais fortes, e raramente se conseguirá persuadir apelando teimosamente a uma discussão racional.

Com Armadilha da Identidade entrei num campo de conflito apaixonado. Acreditava que, aspirando ao máximo de sutileza e nuance – até mesmo à polidez – eu poderia contornar a polarização entre posições antagônicas. Fui ingênuo. Esse antagonismo é tão preciso, uma inversão tão elegante e simétrica, que só pode se basear em premissas compartilhadas. Cada posição só pode existir em virtude da outra: elimine o “reducionismo de classe” e pouco restará da “política identitária” e vice- versa. Portanto, do ponto de vista de qualquer um desses polos, nenhuma outra posição é possível senão a do inimigo. Desse modo, o que um cientista político poderia chamar de uma lógica de dependência de trajetória, gera uma cascata de amigos e inimigos cujas posições são determinadas por metáforas e metonímias, equivalências e oposições, as quais recebem uma justificativa teórica apenas retroativamente.

Como resultado, torna-se difícil imaginar qualquer alternativa à ideologia subjacente. Que uma ideologia possa acomodar disputas tão cruéis parece uma ideia estranha, mas na verdade não é tão estranho. Não se trata de duas posições já existentes que entram em conflito, mas de uma divisão que constitui cada lado do conflito, baseada em premissas e pressupostos compartilhados. Aqueles mais afetados por essas disputas não são apenas dependentes uns dos outros para o que poderíamos chamar de suas identidades, mas também são indistinguíveis em seu comportamento, valorizando a denúncia acima de tudo e florescendo em cantos obscuros e anônimos da internet onde as paixões tristes prevalecem.

No entanto, foi difícil para mim aceitar a opinião – por mais generosa que fosse – de que consegui preencher a lacuna e encontrar uma posição “intermediária”. Só encontrei o vazio na distância percorrida entre as posições. Mas as posições entre as quais se pede que se escolha podem ser, elas próprias, mistificações. São as premissas e os pressupostos desse circuito ideológico que devem ser interrogados, e as suas histórias, traçadas. São histórias de contingência e contradição, e não de origens e fins; não são processos de declínio e queda, e não nos apresentam a opção de regressar a uma origem não corrompida. Acredito que essas histórias mostram que as posições hoje tomadas como certas nem sempre existiram, e as suas categorias não estão simplesmente contidas na realidade. São construções ideológicas vinculadas a processos materiais que é melhor compreender do que criticar.

Na realidade, a minha posição não era “intermediária”, mas sim uma posição diferente que não pertencia à polaridade ideológica. Entretanto, certamente não era uma posição original. Não tenho nenhum crédito por isso. Tentei simplesmente ser fiel ao incontável número de pessoas ao longo da história que acreditaram na erradicação da dominação e da exploração deste planeta – que na combinação quase inexplicável de frieza e compromisso se subordinaram a esse projeto comum e determinaram quais tarefas eram necessárias para alcançá-lo. Não era do seu próprio interesse
que advogados e médicos se juntassem ao proletariado e ao campesinato, que os jovens com tudo a perder se voluntariassem para travar guerras no outro lado do mundo, que os líderes políticos com a perspectiva de uma vida de confortável moderação expressassem posições pelas quais os poderes estabelecidos os puniriam sem piedade. Também não era do seu próprio interesse que membros de uma comunidade oprimida, lutando na sua defesa comum contra as indignidades que sofriam, deixassem as suas casas pela manhã prontos para morrer.

Um projeto desse tipo não tem uma existência tangível e isolável – não podemos encontrar o campo de batalha final onde o acerto de contas terá lugar. A luta é longa e desigual: requer conhecimento, uma avaliação da situação e do que ela permite fazer, e a formulação de uma estratégia que lhe seja adequada. Por essa razão, os grandes revolucionários – embora possam ter começado com reivindicações de democracia, libertação nacional, cidadania – convergiram para o projeto de derrubar o capitalismo, que na situação existente era o limite objetivo de todo projeto revolucionário.

A verdade irrefutável dessa afirmação é difícil de explicar, mas pode ser intuída a partir do estudo de cada luta contra a dominação. A explicação de maior prevalência é a teoria, questionavelmente tida como marxismo, que descreve todos os fenômenos sociais como a expressão das relações econômicas que determinam o curso da história. Durante muito tempo, essa teoria – adotada pelas organizações de massas – forneceu uma garantia para a luta política, de uma forma curiosamente paradoxal: a luta política era apenas aquela que concretizaria o que já era historicamente inevitável. Desenraizada das históricas organizações de massas que consolidaram essa visão do mundo, ela fornece agora uma garantia para a intransigência intelectual: contra os apologistas liberais oportunistas que tentam nos distrair da devastação do capitalismo, os intelectuais socialistas podem defender uma teoria abstrata da primazia do econômico.

Confrontados com as obscuridades covardes desses liberais, tais convicções são compreensíveis. Mas elas são difíceis de manter. Uma filosofia da história progressista tem que explicar o que há de bom no progresso histórico: por que as coisas estão melhorando, e também por que deveriam. No quadro ampliado da história humana, tais perspectivas são relativamente novas. Garanto a vocês que ainda hoje não faltam pessoas que esperam que as coisas piorem; há um preço para entrar no reino dos céus.

Alguns dos que estão comprometidos com a validade da doutrina abstrata complementam a teoria da primazia do econômico com as teorias normativas do liberalismo. É como fazer uma uma dor de cabeça. Essas teorias estão confinadas a pequenos círculos acadêmicos não porque sejam uma ameaça à ordem estabelecida, mas porque é difícil para qualquer pessoa sem uma extensa formação ideológica acreditar nelas. Elas estão tão afastadas das realidades da vida social – das ideias e motivações cotidianas das pessoas, dos processos pelos quais as mudanças históricas realmente ocorrem – que só conseguem explicar uma estreita gama de fenômenos já estipulados tautologicamente como os únicos importantes. Certamente não fornecem qualquer orientação para a ação política, que, esmagada pelo peso da inevitabilidade histórica e separada da análise concreta, acaba por ser determinada por ajustes ad hoc e alianças confinadas às instituições da ordem vigente.

Que a revolução seja inevitável é falso. Igualmente falsa é a noção de que o seu curso seguirá um padrão predeterminado. Toda grande revolução histórica torna-se inexplicável de acordo com esse modelo linear e monocausal da história. Isso não significa que uma teoria abstrata mais intrincada de causas que se intersectam resolva o problema. Mas sim que a política tem uma contingência irredutível e se baseia na análise concreta da situação concreta. É verdade, não se pode negar, que os grandes revolucionários da história recorreram repetidamente às garantias da doutrina abstrata. No entanto, tiveram sucesso porque foram capazes de compreender as situações em toda a sua singularidade.

Porém, é igualmente verdade que existe uma ressonância inequívoca entre esses diferentes acontecimentos políticos. Contudo, ela não é determinada pela primazia abstrata de qualquer tipo de relação de causalidade. Em situações muito diferentes, com formas de dominação totalmente diferentes situações que precedem a emergência do modo de produção capitalista –, as pessoas formulam proposições políticas que ecoam através do tempo e do espaço: que ninguém deveria passar fome, que ninguém deveria ser preso numa jaula, que ninguém deveria ser submetido
à tortura e à morte pelos que detêm um poder arbitrário; que tudo deveria ser comum, que todos são iguais, que as pessoas têm capacidade de governar a si mesmas.

Em Armadilha da Identidade coloquei uma ênfase enorme em episódios históricos que mostravam um antagonismo entre a auto-organização das massas e a neutralização realizada pela elite. Até certo ponto – mas não totalmente – tratava-se de uma questão de classe. A dinâmica de classe dos movimentos sociais fazia parte da explicação para a neutralização da política de massas e da ideologia que emergiu como sua consequência. No entanto, o que percebi à medida que os debates sobre o livro se desenrolavam, foi que a equiparação da política emancipatória com a classe não é evidente. Mesmo aqueles que acreditam que a história é determinada pelas leis econômicas precisam explicar por que é melhor para uma sociedade não ter classes. Mais uma vez, garanto a vocês que não faltam pessoas que acreditam que é bom existirem classes e que, em geral, também acreditam na primazia do econômico. Que capitalista rejeitaria hoje a visão de que a história é impulsionada pelo desenvolvimento das forças produtivas. Que capitalista negaria hoje que a acumulação de capital depende da exploração dos trabalhadores, contra os quais a classe capitalista trava uma implacável luta de classes.

Enquanto o capitalismo existir, a luta de classes será fundamental para a política emancipatória, e as classes dominantes estarão, de forma prática e ideológica, em neutralizá–la. Mas defender – corretamente – o reavivamento da luta de classes não substitui a investigação da política emancipatória como tal e a determinação de como podemos pensar sobre ela. Trata-se de algo que é reconhecido, embora de uma forma que considero totalmente insatisfatória, por aqueles que complementam o socialismo com o liberalismo. O que há de errado com a sociedade de classes, prossegue o argumento, é que as democracias capitalistas violam a liberdade individual que afirmam valorizar, um julgamento que pode ser feito de acordo com alguma concepção da natureza
humana, ou talvez o tipo de experimento mental que se pode ver encenado em comédias populares de televisão.

Para concretizar verdadeiramente a liberdade individual, a luta de classes deve superar a propriedade privada, preservando simultaneamente os direitos liberais. A minha concepção de política emancipatória não envolve normas. Poucos estão satisfeitos comigo por isso; alguns insistiriam que eu de fato não acredito nisso. Mas já indiquei minha posição: em todos os casos práticos de política emancipatória, certas proposições estão presentes – mesmo que não sejam compartilhadas por todos os participantes, e mesmo que não sejam consciente ou diretamente articuladas. O caráter emancipatório dessas proposições não se baseia em normas, mas em decisões. Os exemplos de práticas políticas emancipatórias nem sempre são reconhecidos e, na verdade, são na maioria das vezes intencionalmente enterrados. Temos que escolher se afirmamos que existiram.

Em Armadilha da Identidade argumentei que os revolucionários eram firmes na sua oposição tanto ao racismo quanto ao capitalismo, como consequência  lógica do seu compromisso com a política emancipatória. Ao observar as discussões que emergiram do livro, comecei a pensar que a tarefa teórica mais premente era ir além da oposição entre auto-organização e neutralização, de modo a tentar compreender a própria política emancipatória. O livro que vocês vão ler é uma tentativa de compreender o que impede a realização da prática política emancipatória, do ponto de vista da sua afirmação.

Asad Haider
13 de novembro de 2021

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