Por Joaquim Dantas
Em 1979, nos calcanhares de um divórcio, David Cronenberg se casa com Carolyn Zeifman (depois, Carolyn Cronenberg). O casal vive junto por 43 anos e tem dois filhos – os hoje cineastas Brandon e Caitlin Cronenberg. Em 2017, depois de lutar contra um câncer, Carolyn morre. Em 2025, Cronenberg (o David) violenta as telas de cinema com um estranhíssimo thriller de espionagem: As Mortalhas.
O mais recente filme do Papa do bodyhorror é um prato cheio para os “críticos biografistas” de plantão. Em As Mortalhas, acompanhamos um excêntrico empresário, Karsh, atormentado pela perda de sua esposa. Nos arredores de um de seus restaurantes de alto padrão, o inconsolável viúvo desenvolve e instala um aparato tecnológico controverso: um cemitério que permite que seus clientes acompanhem, em um aplicativo livestream, a deterioração mortuária dos corpos de seus entes queridos. Quando um misterioso ataque acontece, com túmulos sendo profanados e o aplicativo sendo hackeado, uma trama de investigação e intriga se articula, embebida em traições, perversões, pesadelos e um horizonte inviolável de luto. Some isso ao fato de que o protagonista do filme é vivido por um Vincent Cassel que está a imagem “esculpida em Carrara” do cineasta e os paralelos narrativo-biográficos são inegáveis.
No entanto, pensar As Mortalhas simplesmente como o “filme de luto” de David Cronenberg não é somente negar a profunda complexidade dessa narrativa – uma das mais densas e herméticas do diretor –, mas é também ignorar a confluência de um discurso reflexivo que vem sendo desenvolvido há mais de meio século.
Ao longo de 55 anos de carreira, através de mais de 20 longas-metragens, David Cronenberg – salvaguardadas algumas exceções aqui e ali – parece ter sido quase sempre acometido por uma mesma doença temático-somática: o corpo, os corpos. No entanto, ao contrário do que possa parecer, essa questão central cronenberguiana não se postula enquanto repetição. Ao invés disso, ela se apresenta como uma eterna e horrenda tese, que se abre e se esgarça, se expande e se aprofunda, num movimento rizomático infinito de extrapolações.
Nesse sentido, é possível pensar em pelo menos duas linhas principais constantemente exploradas pelo cineasta canadense – linhas que, por muitas vezes, se cruzam e se entremeiam: a estranheza inerente do corpo; e a expansão da experiência através de corpos estranhos. Dizendo de outra forma, o horizonte cinematográfico cronenberguiano está sempre transitando entre os limites da carne e da tecnologia.
Em Calafrios (1975) e Enraivecida na fúria do sexo (1977), as pulsões corpóreas são tão extremas e incontroláveis que se manifestam em fisicalidades externas: de um lado, temos as penetrantes larvas violadoras, criadoras de uma zumbificação orgíaca; de outro, os furúnculos sexuais, vínculos físicos de uma possessão lasciva. Em Os Filhos do Medo (1979), perturbações psicossomáticas geram uma prole vingativa assassina, crianças-tumores do mal, paridas pela angústia. Já Scanners: Sua Mente Pode Destruir (1981) traz a psiquê como fator genético mutante, uma telecinesia de poder bélico – mente sobre matéria, explosivamente. Mesmo Na Hora da Zona Morta (1983), que não é um roteiro original – adaptação de uma obra de Stephen King –, recai sobre esse paradigma de tensões. Ainda dentro dessa mesma lógica, temos Gêmeos: Mórbida Semelhança (1988), com uma narrativa sobre perturbadores e incontroláveis jogos sexuais entre sujeitos fisicamente idênticos, mas psicologicamente antagônicos; Spider: Desafie Sua Mente (2002), um thriller psicológico kafkaniano sobre trauma; e Um Método Perigoso (2011), cuja trama tem literalmente Sigmund Freud e Carl G. Jung como personagens centrais. Postos em diálogo, esses filmes todos parecem refletir sobre o corpo como um universo de estranhezas, manifestas ora de maneira visceral, ora de modo psicossomático.
E é quando a matéria se expande ainda mais, extrapolando seus limites de mente e carnalidade, que adentramos o reino invasivo dos corpos estranhos: ciência, máquina, tecnologia. Já em seus dois primeiros filmes, Stereo (1969) e Crimes of the Future (1970) – narrativas centradas ao redor de clínicas médicas experimentais –, Cronenberg reflete sobre as alterações perpetradas no corpo a partir do aparato científico. Videodrome: A Síndrome do Vídeo (1983) leva o conceito adiante, explorando as possíveis relações – penetrantes, obsessivas, sexuais – entre mídia e corporeidade; é esse filme que postula a disruptiva pergunta: na relação do corpo com o objeto midiático, quem realmente consome e quem é efetivamente consumido? A Mosca (1986) – que talvez seja a obra máxima do autor – problematiza as relações entre os avanços tecnológicos e a obliteração absoluta do humano. Mistérios e Paixões (1991) é a única adaptação possível do universo visual psicotrópico e fragmentário de William S. Burroughs, habitado por máquinas de escrever alienígenas e insetos sexuais delirantes; Existenz (1999) explora os níveis de efetiva realidade em uma realidade virtual; e Crimes do Futuro (2022) pensa a cirurgia e a modificação corporal como performance. No entanto, talvez nenhum outro filme de David Cronenberg tenha levado a limites tão desconcertantes a ideia das relações penetrantes entre o corpo e o artifício quanto Crash: Estranhos Prazeres (1996), uma narrativa sobre apatia pornográfica, mutilação erótica e acidentes de carro. Quando a metáfora-chave da sua obra é a imagem de uma enorme ferida recém-costurada como análogo de um novo órgão sexual... quer dizer, né, veja bem...
Dito isso, nos cabe agora refletir: por qual dessas vias transita As Mortalhas? E a resposta é: nem por uma, nem por outra; mas sim por uma terceira via, a da superação e reinvenção desses modelos. É que, em As Mortalhas, nem o corpo – e suas pulsões – e nem a tecnologia – e suas expansões – são as mesmas antes exploradas no cinema cronenberguiano. É como se o autor, contrariando todas as expectativas que se criam ao redor de artistas com tão longeva carreira, tivesse chegado a um outro nível em suas discussões, uma outra camada ou, quem sabe, uma outra fase. O tipo de gás que só os gênios – e nem todos eles – têm.
Como eu disse, a trama gira em torno de um sujeito dominado pelo luto, que, para lidar com esse senso absoluto e opressivo de ausência, cria um aparato tecnológico sepulcral: uma mortalha-câmera. No entanto, ao invés de capturar a imagem concreta do cadáver em si, esse livestream do além-túmulo, a partir de uma série de algoritmos de computação gráfica, cria uma reprodução desse corpo – capturada por sensores artificiais, interpretada por uma máquina, convertida em imagem CGI e renderizada em uma versão ultrarrealista, mas ainda assim artificial, desse corpo. Como nos lembra a pintura de René Magritte: Ceci n'est pas un cadavre.
É interessante perceber então o quão diferentes são as relações entre corpo e artifício postuladas por As Mortalhas nos paradigmas cronenberguianos.
Nessa nova narrativa, diferentemente do que acontece em outros filmes, o aparato tecnológico não se conecta diretamente ao corpo cujas experiências serão expandidas. Ao invés disso, as tais mortalhas atrelam-se a cadáveres, entidades despidas de qualquer sensibilidade. É com o corpo morto, em decomposição, que a tecnologia dialoga. Por sua vez, o sujeito que tenta ampliar ou modificar sua existência a partir do uso dessa tecnologia não tem seu próprio corpo conectado ao aparato. A relação aqui é mais sutil, ainda que igualmente perturbadora: trata-se de uma apreciação/aproximação intermediada, midiatizada, distanciada, artificializada do objeto corpóreo. A máquina do luto cronenberguiana é, portanto, uma imagem falsa.
O autor parece então apontar aqui para um horror do corpo de outra natureza. Trata-se de um horror da ausência do corpo – do corpo do outro, da pessoa amada –, tentando ser suplantada por um objeto falso, uma imagem, intermediária e incompleta por definição. Se a ideia parece absurda, preste atenção em quanta “vida falsa” você consome e produz todos os dias, em reels, posts, tiktoks. A própria presença constante de uma Assistente Virtual na narrativa reforça esse comentário – e o fato de Hunny, a versão cronenberguiana da Siri ou Alexa, ser performada pela própria Diane Kruger, que interpreta a esposa morta do protagonista no filme, só amplia ainda mais essa reflexão crítica. A questão é que, como em Crash – que se questiona sobre o que acontecerá com o sexo quando o corpo em si não for mais o suficiente –, Cronenberg está novamente refletindo sobre o agora a partir de uma extrapolação: quando a vida falsa não for o bastante, será que a falsa morte, a falsa pós vida, a falsa decomposição nos preencherá? Quando não houver mais livestream, nos apegaremos a um deadstream?
Por outro lado, As Mortalhas é também permeado por imagens do bodyhorror que tão comumente associamos a David Cronenberg. No entanto, se em Calafrios e Enraivecida o horror do corpo é uma metáfora extravagante, aqui ele surge absolutamente concreto: trata-se do corpo mutilado pelo câncer. Ao longo do filme, vemos Karsh ter pesadelos recorrentes, memórias distorcidas do longo processo de decomposição em vida pelo qual sua esposa passou. Cena após cena, a personagem ressurge em sonhos. E sempre que reaparece, ela está cada vez mais deformada, cirurgicamente: falta-lhe um seio, um braço; o corpo nu exposto, coberto por escaras recém costuradas e expansivas cicatrizes doloridas. Por sinal, assim como Cassel, Diane Krueger está absolutamente brilhante no papel de Becca, esse fantasma corpóreo do luto. Curiosamente, contrariando o uso recorrente e impactante em películas anteriores, em As Mortalhas, as cenas em que o imaginário do horror corporal irrompe são justamente as mais tenras e delicadas. Em um filme esteticamente frio e controlado, os “pesadelos” de Karsh, em que o casal se encontra sempre em um contato profundamente íntimo, os dois nus na cama à noite, são, de longe, os mais reconfortantes e singelos. Nunca mais, desde A Mosca, o diretor havia condensado em beleza e humanidade imagens tão profundamente perturbadoras. As Mortalhas é Cronenberg redescobrindo o amor para além do horror.
O filme também trata de paranoia familiar, espionagem industrial, conspiração corporativa, moralismo religioso, inteligência artificial, terrorismo tecnológico e relações sexuais semi-incestuosas – e, sim, claro, de luto, profundo e obsessivo luto. Então eu acho que, por ora, é bom a gente ir parando por aqui. Afinal de contas, isto é uma resenha, não uma tese. E, no fim das contas, eu acredito no direito das pessoas de pensarem sobre Cinema – mesmo que a maioria delas não acredite muito nisso.
Como eu disse no início, a obsessão é um traço comum entre artistas e psicopatas. E, em algum lugar em meio a esses dois extremos, ergue-se a matéria bruta que é David Cronenberg, borrando eternamente essa linha divisória entre o estético e a realidade.
Joaquim Dantas é responsável pelo Selvagem Podcast, junto de Juscelino Neco, disponível em todos os agregadores.