O Diabo na Encruzilhada

Blues, sangue e vampiros em um cerco expressionista no coração amaldiçoado da cultura de Estados Unidos
11 de fevereiro de 2025 por
O Diabo na Encruzilhada
Editora Veneta

Por Joaquim Dantas

Reza a lenda que, certa vez, Robert Johnson, um dos bluesman mais notórios da história, encontrou com o Diabo em uma encruzilhada. Lá ele vendeu sua alma. Em troca, herdou um talento musical tão disruptivo que só poderia mesmo ser fruto do Inferno. Mais tarde ele escreveu a balada sangrenta “Me and the Devil”.

Ryan Coogler é um desses diretores que, como muitos, começou no cinema independente, mas foi imediatamente cooptado pelo sistema de estúdios, para trabalhar em algum filme de franquia – primeiro, com o excelente Creed: Nascido Para Lutar (2015), sétimo longa da franquia Rocky, depois com os Pantera Negra (2018 e 2022). No entanto, parece que, apesar do sucesso monetário e de público, depois de passar anos preso a longos trechos de chroma, enfurnado em computadores de imagens falsas e estrangulado por um cinema de cartoon, o cineasta finalmente sentiu o peso de ter renunciado à sua voz autoral e criativa lá atrás.

Pecadores (2025) é Ryan Coogler redescobrindo o Cinema como forma de Arte.


A história gira em torno de dois irmãos gêmeos, Smoke e Stack, ambos vividos pelo queridinho do Coogler, Michael B. Jordan, com os eventos da trama condensados no transcorrer de um fatídico dia. Fugidos da máfia de Chicago, os protagonistas, munidos de um carregamento de bebidas roubadas, retornam ao Delta do Mississipi para enfiar uma empreitada ousada: abrir um “juke joint”, um bar de blues; um lugar não só de entretenimento, mas onde a comunidade negra do Sul segregado da década de 1930 possa se sentir verdadeiramente livre, ainda que apenas por algumas horas.

A primeira impressão impactante da película é seu visual. Distanciando-se do puramente digital, em Pecadores, Coogler filma como quem pinta, vertendo tinta em um enorme canvas prateado. Tudo no filme vibra e pulsa, especialmente os tons intensos do azulado céu noturno e do vermelho-sangue que se espalha por todas as superfícies. Essa paleta aparece inclusive espelhada no vestuário dos dois irmãos, emulando sua natureza dual. Rompendo a lógica visual do filme de época, Coogler fotografa Pecadores de maneira expressionista, quase como se um artista abstrato armasse uma série de composições sobre antigas fotos em tons de sépia.

“A música nos liberta”, afirma um personagem em determinado momento; e basta olhar a sequência musical que se segue a essa fala para comprovar o que eu disse ali em cima. Uma longa tomada ininterrupta – com cortes escondidos, naturalmente, mas que não alteram o impacto visual e narrativo da sequência –, transitando entre presente, passado e futuro. É a imagem poética de múltiplas culturas e múltiplas origens se entrecruzando; reinventando-se ao serem amalgamadas, dissolvendo-se alegoricamente umas nas outras, em uma narrativa caleidoscópica tingida pela lógica distorcida do sonho, da memória e da ancestralidade. Que porrada!

E por falar em multiculturalidade, outras personagens são convocadas a orbitar a figura dos irmãos. O primo Sammie (estreia extasiante de Miles Caton nas telas), um rapaz jovem, filho de pastor de igreja, mas que é apaixonado pelo ritmo pecaminoso do blues; Slim, um bluesman das antigas, desses sujeitos carcomidos e moldados pela violência do racismo cotidiano sulista (vivido pelo sempre genial Delroy Lindo); Annie (Wunmi Mosako), a praticante local de hoodoo, ex-companheira de Smoke e mãe de sua filha morta; e Mary (Hailee Steinfeld), uma jovem mestiça de pele branca com quem Stack tem uma conturbada relação passada. Além desses, há ainda a presença da comunidade chinesa, uma rápida, mas potente aparição dos indígenas e, claro – o que não poderia faltar em uma narrativa sobre o Sul dos EUA –, nossos antagonistas: os racistinhas escrotos reminiscentes da Klu Klux Klan, que aqui surgem emparelhados aos imigrantes irlandeses, todos mais brancos que participante de protesto armamentista pró-vida. Ah, e para quem não viu nem o trailer do filme, segue um *SPOILER*: a branquitude em Pecadores surge na forma de um bando sanguinário de vampiros! Grande sacada, do tipo que só o Cinema de Gênero pode nos dar.

A narrativa encontra então seu centro quando essas várias raízes heterogêneas se encontram violentamente em uma noite selvagem, repleta de blues, traição, suor, sexo e sangue – e picles de alho, naturalmente. E aqui chama a atenção o uso inventivo de um tropo narrativo familiar: o filme de cerco.

Uma série de personagens, fugindo das mais variadas formas de antagonistas, acham abrigo em uma locação, ficando, ao mesmo tempo, barricados e reféns daquele espaço confinado. E aí desgraça come. Quase sempre se cria um jogo narrativo ambíguo, bipartido, que envolve a tentativa de invasão pelas ameaças exteriores e algum tipo de disputa ou embate entre os sujeitos cercados, que costumeiramente formam uma comunidade forçada e disfuncional. Você já viu esse filme, certo? Os exemplos são infinitos, indo de westerns a filmes de samurai – existem até mesmo filmes de horror de cerco com vampiros, como, por exemplo, Um Drink no Inferno (1996) e 30 Dias de Noite (2007).

No entanto, em se tratando de Pecadores, nenhuma série de filmes parece ter tido uma influência mais importante do que a trilogia de Romero, com ênfase especial na narrativa originadora de tudo, A Noite dos Mortos Vivos (1968) – Despertar dos Mortos (1978) e Dia dos Mortos (1985) completam a tríade. Isso porque Coogler, como Romero, injeta sua narrativa claustrofóbica de um comentário social vivamente crítico. Se nos exemplos mais tradicionais o “outro” invasor é sempre o “estranho” – os foras da lei, os monstros, os diferentes –, com um forte senso de comunidade rapidamente se formando no grupo cercado, na trilogia dos mortos essa lógica se inverte. Em Romero, os invasores sempre simbolizam aspectos problemáticos não da diferença, mas da “norma” social: o racismo e a misoginia em Noite, o consumismo e a alienação em Despertar, a militarização e a tecnocracia em Dia. Além disso, de maneira problematizante, a comunidade formada no interior do claustro é sempre ela mesma bipartida, sugerindo que esse companheirismo forçado é incapaz de superar os problemas externos dos quais se está tentando defender.

Em Pecadores, como em Romero, a estrutura bipartida do cerco parece novamente ecoar a estrutura social do “eles contra nós”: são os vampiros contra os vivos, os opressores contra os oprimidos, os brancos contra os negros – e chineses e indígenas e mestiços e basicamente todos os outros que não são eles. É interessante perceber que, em se tratando dessas imagens de cerco e invasão como metáforas da colonização, os únicos verdadeiramente invadidos, os nativos, são justamente os que ficam mais ou menos de fora da equação narrativa. A guerra de Pecadores fica pautada, portanto, no embate entre grupos distintos de imigrantes; muito embora “certa parcela” desses se veja não como estrangeiros invasores, mas paradoxalmente como sujeitos locais, nativos, donos da terra por direito. Desse estranho jogo das diferenças, nasce um duplo senso de irmandade: a dos opressores, que invadem, e a dos oprimidos, cercados. Interessante notar que, uma vez que você se converte em vampiro, sua origem, sua raça, sua ancestralidade são apagadas, dando lugar a um senso de igualdade entre pares – ou será que é isso mesmo? É assim que, de dentro para fora e de fora para dentro, as comunidades se formam em Pecadores. Os paralelos com a realidade trumpista atual não são mera coincidência.

A mensagem me parece clara: todos estão procurando comunidade, companheirismo, irmandade. No entanto, há um preço a se pagar se o senso de comunidade vier não do amor e da igualdade, mas do medo e do ódio. Existe uma diferença clara entre “pertencer a” e “fazer parte de”, como Slim deixa bem claro na fala entrecortada: “he belongs to us... he belongs with us”. Comunidades se formam o tempo inteiro ao nosso redor, mas é preciso atentar para as armadilhas de uma falsa irmandade. Afinal de contas, a “Klu Klux” nada mais era/é que um “Klã”.

Ou seja, ao utilizar o recurso narrativo do cerco, Coogler consegue condensar e comentar alegoricamente, nesse único dia e nesse único espaço, o aparato díspar, problemático, feroz e agressivo da formação cultural norte-americana. E se a gente for entrar na representação dúbia dos irmãos gêmeos e nos rumos tomados por eles na narrativa, então; a metáfora somente se expande. Verdadeiro golpe de gênio!

Existe um comentário que passa subcutaneamente por toda a narrativa acerca do mito da religião como liberdade. Em um foreshadowing poderoso, a cena inicial do filme mostra o pastor, pai de Sammie, em meio a sua congregação, pedindo ao filho que se liberte dos caminhos pecaminosos e retorne ao seio libertador do evangelho. É o blues do pecado contra a liberdade gospel. Desse modo, a Juke Joint passa a simbolizar o inverso da casa de Deus: um templo aprisionador dos prazeres da carne. E é aí que está a sacada!

É que a Igreja, veja bem, foi fundada na Europa, importada por brancos e imposta sobre todas as outras comunidades; enquanto o blues é uma herança diaspórica da Terra Mãe África – blues que, ao longo do tempo, se transmuta em várias outras vertentes, como o filme deixa belissimamente claro, como o jazz, o rock’n’roll, a soul music e o hip hop. Nesse sentido, a igreja, ao simbolizar esse lugar de falsa liberdade, irmana-se ao clã dos vampiros. É que, uma vez “convertidos”, para que todos possam partilhar de uma mesma “liberdade” e cultura vampírica, é preciso também que todos percam suas origens, sua ancestralidade e sua individualidade, obedecendo a uma aprisionadora mentalidade de grupo – nesse sentido, Coogler irmana seu vampiro ao mito original do zumbi haitiano, metáfora de uma escravidão eterna após a morte. “Esse é o caminho”, afirma um dos vampiros, parafraseando e ecoando as palavras de Cristo; palavras que propõem liberdade, mas que cobram um preço alto: subalternidade, subserviência, obliteração.

Em Pecadores, a música negra – africana, diaspórica – do blues não é somente a representação de um passado, duplo de dor e ancestralidade; é também uma arma de luta e resistência por um futuro verdadeiramente liberto.

Veja bem, eu não estou dizendo que o filme não tem lá suas falhas. Como muita gente que tenta construir narrativas alegóricas poderosas, Coogler pensou meticulosamente na alegoria, mas perdeu um pouco a mão na hora de armar os arcos da história, especialmente no momento que, do ponto de vista narrativo, é o mais importante: o clímax. No entanto, para compensar, o filme faz o favor de ter três finais (!) – que é uma moda atual normalmente sebosa, mas que, aqui, funciona muito bem. Se ao “primeiro final” falta potência, tensão e visceralidade, o “segundo final” é uma apoteose catártica – o terceiro, então... absolutamente poderoso!

Também Ryan Coogler encontrou o Diabo em uma encruzilhada. E lá ele também vendeu sua alma. No entanto, em troca, como pagamento, lhe roubaram o talento – o sangue nos olhos, a arte certeira, a voz que tinha algo a dizer. É que, veja bem, o Diabo, nessa história, não era o Diabo realmente. Era um estúdio enorme, cravado de cifrões, escudos de estrela e homens de ferro. Mas agora, como um pecador ressuscitado, Coogler renega a Igreja a que outrora se rendeu. Melhor ainda: ganha dela jogando em seu próprio jogo. A verdade é que, assim como Robert Johnson, Ryan Coogler sempre teve talento. E a questão acaba sendo sempre a mesma: se, para acreditar no brilhantismo de um artista negro, uma sociedade inteira precisa inventar uma lenda sobre demônios cruzados e almas vendidas, o que deve ser questionado nessa história não é o Diabo, mas sim quem inventou a lenda para começo de conversa.

Pecadores é o grito triunfal daqueles que renegaram o templo.


Joaquim Dantas é responsável pelo Selvagem Podcast, junto de Juscelino Neco, disponível em todos os agregadores.


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