Um Réquiem para David Lynch

O mistério absurdo das estranhas forças da existência.
10 de fevereiro de 2025 por
Um Réquiem para David Lynch
Editora Veneta

Por Joaquim Dantas

 

Escuridão... [fade in] um palco gigante... enorme, com cortinas negras a se abrir. O palco inteiro é preenchido por um paredão de fogo de 60 metros de altura. Em meio às labaredas, milhares de almas gritam silenciosamente... somente o rugido das chamas [fade out].

“Existe uma terra obscura”, David me disse, com sua voz metálica, “onde abundam o mistério e a confusão, onde o medo e o horror sobrevoam juntos, em cidades perturbadas pelo Absurdo”. Eu perguntei se o café estava bom. “Excelente! Preto como uma noite sem luar. E quente!”.

A cafeteria é calma e solitária. Nós dois, vertidos em preto e branco e tons de cinza. Dessa vez, eu não sou o macaco.

“Sabe, King, o grande mistério da vida, o verdadeiro mistério, é esse: a vida é como um donut”. Concordo com a cabeça. Ao fundo, Angelo Badalamenti exorciza seu Fender Rhodes. “Não importa onde esteja, não importa quantas vezes você tenha visto, um donut é sempre um donut. Diante dele, forma e ruptura se revelam”.

Lembro a primeira vez em que ouvi David comentar sua Teoria do Donut. “Se você vir um donut pela metade, você ainda saberia que é um donut?”. À época estávamos em outro lugar, um quarto metafísico, paredes cobertas por longas cortinas vermelhas, um piso de padrão zigue-zague, a pescar os grandes peixes. O anão falava ao contrário.

Respondi que sim. “E se ele estivesse esmagado? Ainda seria um donut?”. Até certo pontou disse. “Não! Um donut é sempre um donut. Não importa em que estado. Infinito, o donut se expande e se recolhe, vira do avesso e atravessa o tempo, contra todas as possibilidades, ressurge feito de si, diante dos nossos olhos. O donut é como a ideia, sempre igual a si mesma, mesmo que violado ou violentado, despedaçado ou desfeito. Um donut é um donut. E não há dúvida sobre isso”. Tive que concordar. À época eu era o macaco. David flutuava.

Em algum momento do passado, David teve uma ideia. Abstrata, um sentimento. Uma atmosfera. “Há essa cidade e esse vento...” e fez um gesto com as mãos. Nós sabíamos exatamente onde isso ia dar, e era um lugar tão maravilhoso quanto estranho.

David, meu amigo, meu irmão, onde se esconderão os grandes peixes agora?

Caminho sozinho pela cafeteria vazia. De vez em quando olho para trás, pra ver se ele ainda está lá. Seu sorriso é o grande mistério. Ele come um donut enorme, suas mãos quase não conseguem segurar. Atrás dele, uma moça veste um longo vestido negro. Ela é loira e ele é jovem outra vez.

Vou até a jukebox, mas ela não está lá. Angelo ocupa seu lugar, sentado ao piano, com um pequeno gravador diante de si. Angelo, o mágico que deseja ver uma chance entre dois mundos. “O que você quer, David? Fale comigo”. Olho para trás. Como a jukebox, David também não está. Não mais. Sua voz vibra no éter.

“Ok”, ele fala, sons metálicos contra o carpete macerado. “Angelo, nós estamos em uma floresta sombria agora. E há um vento suave soprando através das árvores. E há uma lua no céu. E você pode ouvir os sons de animais ao fundo. E há o chamado da coruja. E nós estamos em uma floresta sombria com o vento suave a rolar. Me leve a essa bela escuridão”.

Angelo, pássaro noturno, acerta as notas como telepatia. A escuridão ganha vida, em um palco gigante, tomado por sombras. E na mente de David, tudo se torna palpável. Por trás das árvores, uma moça solitária. Ela está inconsolavelmente triste. Silencio. E ela está andando em direção à câmera, cada vez mais perto, cada vez mais perto. Tristeza, solidão e violência. E veludo azul.

Meu coração se despedaça. E afunda. E continua a afundar, continua a afundar. E agora estamos de volta à floresta de sombras. Quieta e misteriosa, através da noite.

Pouco depois, Angelo some. Ao meu redor, também a cafeteria evanesce. O mundo é um lugar vazio de mistério agora. As superfícies têm forma e sentido. A realidade é idêntica a si mesma. Mas seu reconhecimento não revela nada. Como o donut, a realidade é sempre ela mesma. E sem David por aqui, não existe mais ruptura. Sem mais migalhas, a geleia permanece intacta. As corujas são o que parecem ser e esse é um fato terrível. O verdadeiro mistério foi sempre esse: para sentir o sabor do donut, é preciso destruí-lo, violá-lo, violentá-lo. E David sabia disso.

Grito em silêncio. Somente o rugido das chamas.

Mas a verdade absoluta é que David ainda está aqui. Isso eu percebo agora. Olho através de um espectro, tão maravilhoso quanto estranho. Ele está lá, homem elefante, mais humano que nós; visão de planetas e pesadelos; uma estrada perdida, um império dos sonhos; um gigante, um anão, um coração selvagem; um detetive de pistas invisíveis, brotando caos onde havia estrutura. “Fique de olho no donut, King, não no buraco”, ele me diz, e eu sorrio através do luto. David ainda está aqui.

Quando a estrada termina, desligo o cortador de gramas que me trouxe até aqui. Um casebre simples me aguarda, como se anunciado. Meu velho irmão me aguarda, sentado à varanda. É noite. Ele observa as estrelas e me olha. Não dizemos nada.

Por tudo, David, por tudo...

 

Joaquim Dantas é responsável pelo Selvagem Podcast, junto de Juscelino Neco, disponível em todos os agregadores.

 

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