A primeira personagem dessa história foi a caipora. Como professora em uma universidade do Recôncavo baiano há mais de nove anos, já havia realizado diversas pesquisas e trabalhos de campo pela região, berço do samba de roda. Nessas andanças, conversando com alunos, marisqueiras, pescadores, lavradores e outros trabalhadores – que eram também músicos e sambadores – fui conhecendo suas histórias em diferentes rodas e sabendo de seus encontros, e desencontros, com caiporas e outros seres que não pareciam ter nada de sobrenaturais. De início, eles surgiam em nossos papos sem qualquer aviso prévio. Pouco a pouco, eu mesma comecei a questioná-los sobre eles.
Embora ninguém soubesse muito bem como descrevê-la, a caipora vivia por ali, podendo mesmo embaralhar os caminhos de quem não se preparava para encontrá-la ou lhe trazia oferendas. Quando ela estava presente, era comum que os desavisados se perdessem no meio do manguezal ou das roças. Para escapar de suas artimanhas, tinham então de lembrar que ela “pegou” a pessoa e confundiu seus passos. Pronunciar seu nome era uma maneira poderosa de quebrar esse encanto. Mas também era reafirmar que a Caipora queria ser reconhecida, queria ter seu lugar e seu poder admitidos por quem “invade seu espaço”. Quem sabe por já conhecê-la, longe de nos desencaminhar, ela começava a abrir caminhos.
Quando o projeto desta HQ se iniciava, lembrei dessas relações entre samba, mangue, mato e caipora. Foi assim que, em uma tarde pós-aula, enquanto esperava o ônibus para voltar a Salvador, comecei a fazer algumas buscas descompromissadas na internet. Combinando as palavras samba de roda e caipora, acabei caindo em páginas que falavam da comunidade quilombola Pitanga dos Palmares-Caipora, localizada no município de Simões Filho, a meio caminho entre o Recôncavo e Salvador. Na
estrada, já anoitecendo, enviei uma mensagem para o amigo Gabriel Gabiru, com quem não falava havia algum tempo. E logo contei do projeto e da descoberta que acabara de fazer. Qual não foi nossa surpresa quando ele contou que, na semana seguinte, aconteceria um evento em um terreiro de candomblé, localizado justamente na comunidade de Pitanga dos Palmares-Caipora. Em poucos dias, conseguimos combinar que ele sairia de Caraíva, no extremo sul da Bahia, e iríamos juntos até a comunidade.
Foi numa ensolarada tarde de sábado. Chegamos bem na hora do caruru, que antecedeu a inauguração dos novos dormitórios para as mulheres no terreiro de Mãe Jaciara. Quando as celebrações acabaram, partimos para a casa de Maria Bernadete Pacífico Moreira, mais conhecida como Mãe Bernadete, líder da comunidade. Aproximava-se a realização de uma farinhada, evento que misturava produção coletiva de farinha de mandioca com almoço e festa. Apesar da agitação dos preparativos, Mãe Bernadete e seu neto Dinho pararam suas atividades para nos receber. Servidos de algumas latas de cervejas, esticamos aquela tarde em meio às lembranças de avó e neto: da fazenda mocambo que deu origem à comunidade; dos sambas da parteira Maria Alvina; do mestre Matias, que foi capitão do bumba-meu-boi, rezador, cantador e dançarino nas festas de São Gonçalo; de orixás, marujos, de caiporas e suas artimanhas. Mas também falamos de disputas de terra, racismo e das constantes dificuldades e violências por que passam os territórios quilombolas no Brasil, e especialmente na Bahia. Já era quase noite quando retornamos a Salvador, “encantados” com as trilhas que se alongavam naquela terra de caiporas.
Ao final, as histórias que contamos aqui não são exatamente as de Pitanga dos Palmares. Há saberes, episódios, personagens, instrumentos, versos, requebros, falares dali e de outras regiões baianas, que fui conhecendo em trabalhos de campo e nas pesquisas de estudiosos pioneiros, como o fundamental dossiê Samba de roda do Recôncavo Baiano, produzido pelo IPHAN. Mas a inspiração na comunidade de Dona Bernadete, brutalmente assassinada quando ainda escrevia as primeiras cenas dessa HQ, está presente em alguns casos, na festa de São Gonçalo, na dança de engenho e, sobretudo, nas falas das mulheres negras (algumas delas transcritas aqui), que seguem lutando pelo samba de roda, por suas comunidades e por nossa história.
Axé!
Salvador, dezembro de 2024
Juliana Barreto Farias é professora-adjunta no curso de História da Unilab-Malês e no PPG em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras da UNEB, Salvador. Doutora em História Social pela USP, especialista em história da África e da diáspora africana, publicou, entre outros livros, Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação e Diáspora mina: africanos entre o golfo do Benin e o Brasil (Nau Editora, 2020).