Por LetIcia de Castro
Quando chegou na tenda da praça da Matriz onde ocorria a programação da Flipinha e da FlipZona, o escritor franco-ruandês Gaël Faye, autor de O Tédio das Tardes Sem Fim, entre outros, foi convidado pela produção do evento a cantar durante a mesa que começaria em poucos minutos.
Antes de ser autor dos premiados romances Pequeno País (Carambaia, 2023) e Jacarandá (Editora 34, 2025) e do infantil O Tédio das Tardes Sem Fim (Oh!, 2023), Gaël já era um rapper de sucesso na França. Foi justamente a música que abriu espaço para a carreira literária, quando a editora e agente literária francesa Catherine Nabokov prestou atenção às suas letras e o convidou a transformar aquelas rimas em romance, o que resultou em Pequeno País. O livro vendeu quase um milhão de exemplares na França, ganhou adaptação para o cinema, para o teatro e para os quadrinhos.
O Tédio das Tardes Sem Fim, de Gaël Faye.
Na música, Gaël estreou em 2008 no duo Milk Coffee and Sugar, formado com o franco camaronês Edgar Sekloka, ou Suga, com uma sonoridade influenciada pelo rap de grupos como o americano The Roots e o francês Time Bomb e a música africana. Os ritmos africanos e as lembranças do Burundi e de Ruanda seguem presentes no trabalho solo do rapper, que já lançou três álbuns, ganhou um disco de ouro e já colaborou com artistas como o jazzista etíope Mulatu Astatke e a brasileira Flávia Coelho.
Aquele não era o primeiro convite para uma “canja” na Flip. Durante os preparativos para a visita do autor, as editoras que o publicam no Brasil (nós da Veneta, a Carambaia e a Editora 34) chegaram a propor uma apresentação musical na Casa Sete Selos, espaço que reúne editoras independentes e faz parte da programação paralela da Flip em Paraty. Mas ele preferiu focar nos debates sobre o livro.
Quando veio a proposta para cantar de improviso, portanto, a primeira reação do artista foi declinar, um pouco constrangido com a situação. Mas ele não previa o rumo que aquele encontro iria tomar. Para conduzir o papo na tenda colorida que reúne a programação infantojuvenil, o educativo da Flip convidou cinco mulheres da região de Paraty: Vitória Mello, do coletivo de leitura FlipZona, a poeta Potyra Güyra e o grupo de rap H2M, formado por Babi Pietra, Alexia Magalhães e Suealyne, que apresentou algumas rimas para o público logo que subiu ao palco.
Gaël Faye participou de debate na programação da FlipZona, com MCs de Paraty.
A primeira parte da conversa, conduzida pelas anfitriãs, girou em torno de temas como as memórias de infância, registradas em O Tédio das Tardes Sem Fim, imigração, e, é claro, o hip hop. “Tive uma infância feliz, no Burundi, cercado de natureza. Meu pai trabalhava em uma reserva florestal, então eu estava diariamente em contato com animais, plantas. Foi a guerra que me expulsou desse reino da infância e aquilo foi tão violento que fez surgir em mim a escrita”, disse, referindo-se à guerra civil que eclodiu no Burundi nos anos 1990 e levou sua família a se mudar para a França, história narrada em Pequeno País. Quando a poeta Potyra Güyra perguntou o que ele gostaria de transmitir com sua música, a resposta foi objetiva: “Que as pessoas dancem e pensem”, arrancando aplausos e gritos na plateia e no palco.
Mas Gaël não foi o único a contar sua história naquela tarde. Quis conhecer também a trajetória de suas interlocutoras, o que as motivava a subir ao palco e lembrou que, tanto na França quanto em Ruanda, era raro ver mulheres no rap. “A cena de rap no Brasil tem muitas mulheres incríveis. Os homens rimam sobre drogas, armas, festas. Nós, mulheres, rimamos sobre maternidade solo compulsória, sobre ciclo menstrual, sobre a diferença salarial entre os gêneros”, disse Babi Pietra.
Quando foram abertas as perguntas para a plateia, a primeira pessoa a pegar o microfone intimou o autor: “Gaël, essa é a segunda vez que eu ouço você falar na Flip, mas ainda não ouvi você cantar. A gente quer te ouvir cantar”. E então, contrariando todas as previsões, ele pediu que soltassem a base instrumental e fez uma performance inédita, um mashup ao vivo de “Allô la Terre”, de sua primeira banda, Milk, Coffee and Sugar, e “Balade Brésilienne”, uma parceria com a cantora brasileira radicada na França Flávia Coelho, mas que contou, naquele palco, com a voz e a performance poderosa das MCs paratienses Babi Pietra, Alexia Magalhães e Suealyne, do grupo H2M, em uma surpreendente e empolgante batalha de rimas.
A performance foi tão impactante que terminou com promessas de parcerias futuras entre o rapper francês e as brasileiras. “Fiquei impressionado. Elas têm uma presença de palco incrível e o domínio total da palavra”, disse, enquanto caminhava para os autógrafos finais da temporada.
Exílio da infância
Filho de pai francês e mãe ruandesa, Gaël Faye nasceu em Bujumbura, capital do Burundi, em 1982. Viveu lá até os 13 anos, quando a guerra civil fez sua família se exilar na França. A interrupção da infância por uma violência da magnitude de uma guerra civil é o que está na base de todo o trabalho do artista, tanto musical quanto literário. “A infância é a matriz da minha escrita e da minha criação e, através dos diferentes meios com os quais eu trabalho (a música e a escrita), eu tento retomar essa infância. A particularidade do meu percurso é que eu fui expulso da infância pela violência da guerra civil do Burundi”, disse na mesa realizada na Casa Sete Selos, mediada pelo jornalista Ruan de Souza Gabriel, nesta mesma edição da Flip.
Mais do que um exílio geográfico, para ele a experiência da imigração em meio à guerra marcou um exílio da própria infância. “Porque a gente não habita apenas o espaço, a gente habita o tempo também”, disse, depois, na FlipZona. Essa complementaridade entre tempo e espaço é uma ideia bastante presente em O Tédio das Tardes Sem Fim. O livro, ilustrado por Hippolyte, narra um tempo distinto daquele que os adultos (e que muitas crianças) vivem no mundo contemporâneo. Um tempo marcado pelo tilintar das argolas da cortina, pelo barulho da água pingando da torneira, pelo desfile das formigas no matagal. Um tempo sem nada para fazer. Essa infância que antecede a guerra, que ele viveu em contato com a natureza, com os amigos, na qual o tédio abriu espaço para a imaginação inspirou a música que deu origem ao livro. “L’ennui des aprés-midi san fin” (2013) é considerada pelo próprio autor sua canção mais importante. “Escrever essa canção foi uma forma de mostrar que, antes da guerra, nós vivíamos vidas banais, nós nos entediávamos”, disse, em sua primeira participação na Flip, em 2019.
Hoje, os versos sobre a “banalidade” daquela rotina de uma criança comum em um país da África ganham novos sentidos. Nos lugares do mundo onde não é a guerra a ameaçar o tempo da infância, o uso desenfreado de telas, o excesso de atividades cumprem esse papel. Em qualquer situação, é necessário que as crianças tenham assegurado também o seu direito ao ócio, ao tempo livre, ao tédio.
Confira a participação de Gaël Faye na programação oficia da 23ª Flip:
Leticia de Castro é jornalista e diretora editorial da Veneta e do selo infantil Oh! Outra História.