João Pinheiro: “Tem provocação até para mim mesmo”
Siga-nos
João Pinheiro fala sobre o processo de criação da HQ Depois que o Brasil Acabou em entrevista à Veneta
Por Seham Furlan
Em seu novo livro, Depois que o Brasil Acabou, João Pìnheiro lança um olhar ao Brasil desde o golpe contra Dilma Roussef até os dias atuais, retratando um país devastado. Em entrevista à Veneta, o autor fala sobre referências gráficas, a importância das colaborações para essa HQ e a esperança do que está por vir no país.
VENETA: Quais foram suas principais referências gráficas brasileiras durante o processo de elaboração de Depois que o Brasil Acabou?
JOÃO PINHEIRO: São várias. Estava muito influenciado pelos meus amigos dos fanzines, Diogo Gerlach, MZK, Evandro Alves e Schiavon. Têm as minhas referências do quadrinho nacional mais antigas, o quadrinho popular dos anos 70 e 80, quadrinhos de terror e Marcello Quintanilha. Quadrinho popular brasileiro e os quadrinhos mais alternativos atuais.
V.: Como foi unir todas essas coisas?
J. P.: Fui fazendo durante os acontecimentos, o que uniu tudo foi o período. A HQ fala de coisas que são problemas constantes no Brasil, mas que se intensificaram no último período: a luta de classes, a desigualdade. Isso é o que dá unidade. São histórias diferentes, algumas com mais humor, crônicas.
V.: Você usa a ironia contra tudo e todos, inclusive, contra os leitores. É para provocar?
J. P.: Sim, a ironia, o humor, a provocação. Tem provocação até para mim mesmo. O leitor vai ver uma história onde os revolucionários estão conversando e falam: “Vamos fazer alguma coisa! Que tal se a gente fizer um gibi?”. São as armas que a gente tem. Eu confio sempre nos leitores, eles conseguem entender as diferentes abordagens, cada um ao seu modo. Acho interessante desafiar sempre. É o lema da Veneta, inclusive.
V.: Quais foram os comentários que você recebeu sobre esse trabalho durante o processo de elaboração, ou ao mostrar para algum amigo?
J. P.: Tenho feedbacks do pessoal que comprava o fanzine, Cavalo de Teta, já que grande parte das histórias que estão em Depois que o Brasil Acabou saíram no zine. O pessoal curtiu. A polarização provoca uma reação, as pessoas têm vontade de se manifestar. É uma lei da dialética. Você tenta proibir algo e quanto mais você proíbe, mais as pessoas querem contestar.
Nesse sentido, muita gente dizia: “Isso é um alento! Que legal ter esse quadrinho neste momento”. Mas foi de um público mais restrito, de fanzine, acredito que atingiremos um público maior agora. Vamos ver como vai ser!
V.: Sua HQ entrega um registro crítico dos últimos anos no Brasil, retratando figuras como Bolsonaro, Kim Kataguiri, Mano Brown, Marighella, que se deslocam entre posições de heróis e vilões no imaginário das pessoas. Qual é a nossa relação, enquanto povo, com essas figuras? Precisamos de heróis?
J. P.: Pois é. Essa história de heróis e vilões é algo maniqueísta, bem estadunidense. Acredito na luta coletiva, não em heróis individuais. Inclusive, não acredito em arte individual, por isso o álbum é um reflexo de quadrinhos que foram sendo feitos ao longo dos anos e de forma coletiva. Acredito que a luta, a resistência do povo, é coletiva nesse sentido.
Uma luta entre opressores, a burguesia, e os trabalhadores. Os heróis são o próprio povo, mas claro que, lidando com os símbolos que já existem nos quadrinhos, dos gêneros dos super-heróis, deu para ironizar, brincar com isso. Aparece um herói, mas, de repente, você vai ver, não é! Ele está disfarçado. A HQ ironiza, metaforiza várias dessas tradições iconográficas dos quadrinhos, as narrativas. Mas não acredito em heróis individuais, não.
V: “Pandemia na Quebrada”, em parceria com Sirlene Barbosa, e “Farol de Quebrada” lançam um olhar sobre a pandemia a partir da periferia. Hoje, o que era dito por pesquisadores no início de 2020 se concretizou: a Covid-19 nos afetou de forma desigual, “tem rosto, CEP, saudade”. Onde depositar nossas esperanças e responsabilidades para que o Brasil não continue se acabando?
J. P.: Nossa… É óbvio que a questão da desigualdade, a questão material, vai influenciar tudo o que acontecer de bom e de ruim no país. Na pandemia, quem mais sofreu foram os pretos, os pobres e o povo trabalhador. Inclusive, mundialmente.
Vemos, por exemplo, que a África do Sul não teve vacina, então, o vírus corre solto desenvolvendo variantes. Na periferia do Brasil, nos bairros populares, o mesmo: é onde as pessoas mais sofreram e morreram. Para o Brasil não se acabar, só a união popular, a conscientização do povo cada vez mais. O Silvio Tendler tem uma frase que resume um pouco dessa resposta: “É tanta gente que o Brasil não acaba”.
Precisamos retomar o orgulho. Não aquele do Brasil oficial, dominado pelo imperialismo, mas o do Brasil real, das pessoas, cultura e história rica, apesar de sempre quererem diminuir e acabar com a autoestima do brasileiro. O povo não perde isso. Eu percebo que isso continua vivo.
O povo ama o Brasil. Se alguém vai a um bairro periférico e fala mal do Brasil… Já vi isso várias vezes em jogo de futebol ou em um bar. Brasil? Defende! Mas a classe média, não. Às vezes, a pessoa viaja para um país de fora, vê aquela riqueza e não pensa que aquilo também é por conta da nossa miséria. Volta pensando que o país é uma droga. Não é. A solução para o Brasil não acabar sempre será coletiva. O povo vai impedir que isso aconteça. Acredito.
Títulos relacionados: