ALMA NEGRA EM PELE BRANCA?

Por Steve Biko
13 de março de 2025 por
ALMA NEGRA EM PELE BRANCA?
Editora Veneta

“É da história trazer à tona o tipo de líderes que agarram o momento, que unem

os desejos e aspirações dos oprimidos. Assim foi Steve Biko, um produto de

seu tempo, um orgulhoso representante do despertar de um povo.” 

– Nelson Mandela


Steve Biko (1946-1977) foi uma das principais figuras na luta da África do Sul

pela libertação do regime do Apartheid. No final dos anos 1960, liderou o

movimento pela organização do povo negro autônoma das organizações

brancas, mesmo aquelas liberais (ou seja, progressistas) e esquerdistas. Ainda

que mantivesse o diálogo e grande amizade com diversos líderes dos

movimentos brancos anti-Apartheid, Biko via que era preciso algo antes de

uma integração completa na luta contra o racismo. Nesse texto, publicado

originalmente em 1970, ele apresenta seu ponto de vista.

***

A comunidade branca na África do Sul é basicamente homo­gênea. É um grupo de pessoas acomodadas, que desfrutam de uma posição privilegiada, a qual não merecem, que têm consciência disso e que, por essa razão, passam todo o tempo tentando justificar por que são assim.

Com a teoria de “liberdade em separado para as várias na­ções dentro do Estado multinacional da África do Sul”, os nacio­nalistas fizeram muito no sentido de dar à maioria branca da Áfri­ca do Sul uma espécie de fundamentação moral para o que ocorre. Todo mundo se satisfaz com a declaração de que “essa gente” — referindo-se aos negros — será libertada quando estiver pronta para dirigir seus próprios negócios em suas próprias áreas.

Mas não é com “essa gente” que estamos preocupados. Nosso problema é aquele grupo de pes­soas bem-intencionadas: liberais, esquerdistas etc. São os que alegam não serem responsáveis pelo racismo dos brancos e pela “atitude desumana do país em relação ao negro”. São as pessoas que declaram sentir a opressão com a mesma intensidade que os negros e que, por esse motivo, também deveriam se envolver na luta do negro por um lugar ao sol. Em resumo, são as pessoas que dizem que têm a alma negra dentro de uma pele branca.

O papel do branco liberal na história do negro na África do Sul é bem curioso. A maioria das organizações negras estavam sob a direção de brancos. Foi só no fim da década de 50 que os negros começaram a exigir o direito de serem seus próprios guardiões.

Sob nenhum aspecto a arrogância da ideologia liberal é mais evidente que na insistência em afirmar que os problemas do país só podem ser solucionados por uma abordagem bilateral, envol­vendo tanto os negros quanto os brancos. Por esse motivo vemos organizações e partidos políticos multirraciais e organizações estudantis “não raciais”, todos os quais insistem na integração não só como um objetivo final, mas também como um meio.

A integração de que falam é artificial, antes de tudo por resultar mais de uma manobra consciente do que de uma orientação profunda da alma. Em outras palavras, as pes­soas que formam o organismo integrado foram extraídas de várias sociedades segregadas, com seus complexos de superioridade e de inferioridade introjetados, complexos que continuam a se manifestar mesmo na estrutura “não racial” do organismo integrado. Por­tanto, a integração assim obtida é uma via de mão única, na qual os brancos são os únicos a falar, cabendo aos negros escutar. Uma vez que um grupo goza de privilégios à custa de outro, torna-se evidente que uma integração arranjada às pressas não pode ser a solução do pro­blema. É o mesmo que esperar que o escravo trabalhe junto ao filho de seu dono para eliminar as condições que o levaram à es­cravidão.

A busca dos negros pela autoafirmação, numa sociedade que os trata como eternas crianças menores de 16 anos, não deve pa­recer anacrônica a nenhuma pessoa verdadeiramente interessada numa integração real. Uma verdadeira integração não precisa de planejamento ou estímulo. Quando os vários grupos de uma comunidade se afirmam o suficiente para que haja respeito mútuo, temos então os pontos básicos para uma integração verdadeira e significativa. É preciso que cada grupo seja capaz de alcançar seu estilo de vida próprio sem invadir ou ser frustrado por outro. Essa é a verdadeira integração.

Portanto, enquanto os negros estiverem sofrendo de um com­plexo de inferioridade — consequência de trezentos anos de opressão —, serão inúteis como coconstrutores de uma sociedade normal. Assim, como prelúdio, é necessário estabelecer nas bases uma consciência negra tão forte que os ne­gros possam aprender a se autoafirmar e a reivindicar seus justos direitos.

Desse modo, ao adotar a linha de uma abordagem não racial, os liberais reivindicam o monopó­lio da inteligência e do julgamento moral e estabelecem o padrão e o ritmo para a realização das aspirações do negro. Eles querem se afastar de todo tipo de “extremismo”, con­denando “a supremacia branca” por ser tão ruim quanto o “Poder Negro”! Oscilam entre os dois mundos, verbalizando com perfei­ção as reclamações dos negros ao mesmo tempo que extraem o que lhes convém dos privilégios dos brancos.

O mito da integração proposta pela ideologia liberal precisa ser derrubado e morto, pois ele possibilita que se acredite que al­go está sendo feito. Na realidade, porém, os círculos artificialmen­te integrados são um soporífero para os negros e fornecem uma certa satisfação para os brancos de consciência culpada. Tal mito se baseia na falsa premissa de que, já que neste país é muito difícil reunir raças diferentes, então o simples fato de se conseguir essa reunião é em si mesmo um grande passo para a total libertação dos negros. Nada poderia ser mais irrelevante e, portanto, enganador.

Em primeiro lugar, os círculos de brancos e negros são qua­se sempre uma criação de brancos liberais. Como prova de que se acham completamente identificados com os negros, conforme ale­gam, eles convidam alguns negros “inteligentes e articulados” para “tomar um chá em casa”, ocasião em que todos os presentes se fa­zem a mesma velha e gasta pergunta: “Como podemos provocar mudanças na África do Sul?”. Quanto mais chás desse tipo alguém organizar, mais livre se sentirá da culpa que perturba sua consciência.

A partir de então es­se alguém se moverá em seus círculos brancos — hotéis, praias, res­taurantes e cinemas só para brancos — com a consciência menos pesada, achando que é diferente das outras pessoas. E, no entanto, no fundo de sua mente existe o constante pensamento de que tudo está muito bem para ele e que, por isso, não deveria se preocupar com mudanças. Embora não vote nos nacionalistas (já que, de qualquer­ jeito, eles são agora a maioria), ele se sente seguro sob a proteção oferecida por eles e, inconscientemente, repele a ideia de mudança.

Esse é o ponto que separa o liberal do mundo negro. Os liberais encaram a opressão dos negros como um proble­ma que precisa ser resolvido, algo que enfeia um pano­rama que, sem ele, seria muito bonito. De tempos em tempos eles se esquecem do problema ou deixam de olhar para o que enfeia a paisagem. Por outro lado, em sua opressão, os negros experimentam uma realidade da qual nunca conseguem escapar. Essa é a razão por que os negros falam com muito mais urgência que os brancos.

Não im­porta o que um branco faça, a cor de sua pele — seu passaporte para o privilégio — sempre o colocará quilômetros à frente do ne­gro. Portanto, em última análise, nenhum branco escapa de per­tencer ao campo opressor.

Em vez de empenharem todas as suas forças numa tentativa de eliminar o racismo de sua socie­dade branca, os liberais desperdiçam muito tempo tentando pro­var ao maior número possível de negros que são liberais. Tal atitude provém da crença errônea de que estamos diante de um pro­blema de negros. Não há nada de errado com os negros. Os brancos liberais preci­sam deixar que os negros cuidem dos próprios assuntos, enquanto eles devem se preocupar com o verdadeiro mal de nossa socieda­de: o racismo branco.

Em segundo lugar, os círculos mistos de brancos e negros são círculos estáticos, sem direção nem programa. As mesmas perguntas são feitas e a mesma ingenuidade aparece nas respostas. A verdadeira preocupação do grupo é mantê-lo em funcionamen­to, mais que torná-lo útil. Nesse tipo de situação podemos ver um exemplo perfeito de como a opressão vem agindo sobre os negros. 

Fizeram com que eles se sentissem inferiores durante tanto tem­po que se sentem consolados em beber chá, vinho ou cerveja com brancos que parecem tratá-los como iguais. Como consequência, têm o ego reforçado a tal ponto que se acham superiores aos ou­tros negros que não recebem o mesmo tratamento dos brancos. É esse tipo de negro que constitui um perigo para a comunidade.

Esses negros de inteligência obtusa, egocêntricos, são tão culpados pela falta de progresso quanto seus amigos brancos, pois é desse tipo de gru­po que a teoria do gradualismo emana e é o que mantém os negros confusos, sempre à espera de que um dia Deus desça do céu para resolver seus problemas.

Tais pontos de vista significam que sou contra a integração? Se pela integração se entende a penetração dos negros na socieda­de branca, a assimilação e a aceitação dos negros num conjunto de normas já estabelecido e num código de comportamento esta­tuído e mantido por brancos, então SIM, sou contra. Sou contra a estratificação da sociedade em superior-inferior, branco-negro, que faz do branco um professor perpétuo e do negro um aluno per­pétuo (e um mau aluno, além do mais). Sou contra a imposição de todo um sistema de valores ao povo nativo por parte de uma minoria colonizadora.

Se, por outro lado, a integração significar que haverá uma participação livre de todos os membros de uma sociedade, que ha­verá condições para a total expressão do ser em uma sociedade que se transforma livremente conforme a vontade do povo, então estou de acordo. Um país na África, onde a maio­ria do povo é africana, precisa inevitavelmente apresentar valores africanos e ser africano de verdade em seus costumes.

E quanto à reclamação de que os negros estão ficando racis­tas? Essa queixa é um dos passatempos favoritos de liberais frus­trados que sentem que estão perdendo terreno em sua atuação co­mo curadores. Esses autonomeados curadores dos interesses dos negros se vangloriam de seus anos de experiência na luta pelos "direitos dos negros". Quando os negros anunciam que chegou a hora de fazerem coisas para eles mesmos, e inteiramente por eles mesmos, todos os brancos liberais gritam, como se fosse o fim do mundo!

As pessoas bem-informadas definem o racismo como a discriminação praticada por um grupo contra outro com o objetivo de dominar ou de manter a dominação. Em outras palavras, não se pode ser racista a menos que se tenha o poder de dominar. Os negros estão apenas reagindo a uma situação na qual verificam que são objeto do racismo branco.

Somos segregados coletivamente — o que pode ser mais lógico que reagir como um grupo? Quando os trabalhadores se unem sob os auspícios de um sindicato para lutar por melhores condições de vida, ninguém no mundo ocidental se surpreende. Mas, de algum modo, quando os negros querem agir por si, o sis­tema liberal parece encontrar nisso uma anomalia. Na verdade, trata-se de uma contra-anomalia. A anomalia se encontra antes, quando os liberais são presunçosos o suficiente para achar que ca­be a eles lutar pelos negros.

Nenhum liberal verdadeiro deveria se ressentir com o crescimento da consciência negra. Se é um verdadeiro liberal, tem de entender que ele mesmo não passa de um oprimido; que, portanto, precisa lutar pela própria liberdade, e não pela liberdade daqueles vagos “eles” com quem na verdade não pode dizer que se identifica.

O liberal deve se concentrar, com dedicação total, na ideia de ensinar a seus irmãos brancos que num dado momento a história do país poderá ser reescrita e que poderemos viver “num país onde a cor não servirá para colocar um homem num compar­timento”. Em outras palavras, o liberal precisa desempenhar o papel de um lu­brificante de modo que, quando mudarmos a marcha à procura de uma direção melhor para a África do Sul, não se ouça o ruído dos metais em atrito, mas o som de um movimento livre e fluido de um veículo bem-cuidado.

Frank Talk


Stephen (Steve) Bantu Biko (1946-1977) foi um ativista sul-africano e líder fundamental na luta contra o Apartheid. Um dos fundadores do Movimento da Consciência Negra na África do Sul, Biko destacou-se por sua crença no empoderamento psicológico e político da população negra como forma de resistir à opressão racial. Seu pensamento e coragem inspiraram gerações, apesar de sua vida ter sido tragicamente interrompida pela repressão brutal do regime segregacionista em 1977. Mesmo após sua morte, suas ideias continuam a ecoar como símbolo de liberdade e dignidade humana.


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