Confira um trecho do prefácio de Nejishiki, clássico de Yoshiharu Tsuge que está nos últimos dias de pré-venda com 20% de desconto no site da Veneta. Escrita pelo jornalista Thiago Borges, a introdução apresenta a obra como um mergulho sem rede no inconsciente — um quadrinho que rompe com a lógica tradicional da narrativa e desafia o leitor a sentir antes de entender. Publicado originalmente em 1968, Nejishiki permanece como um dos marcos do mangá de autor, desconcertante e atual como nunca. (G.Z.)
Mergulho no inconsciente
“Nejishiki” mistura elementos narrativos que nunca tinham sido usados antes em uma página – ou, para ser menos taxativo, que nunca tinham sido usados simultaneamente. E é isso o que confere à obra o status de divisor de águas nas possibilidades dos quadrinhos enquanto mídia. O leitor encontra narração em primeira pessoa que pouco se liga objetivamente aos desenhos; falta de definição imediata do tema a ser abordado; arte fotorrealista ao lado de traços cartunescos; texturas complexas (hachuras, retículas) junto de cores chapadas; grande espaço negativo, com quadros com mais de dois terços do espaço em branco.
O quadrinista mergulha no inconsciente para criar imagens a partir da lógica de um pesadelo (ou, no mínimo, um sonho desconfortável). Tais imagens não são reproduções fiéis do mundo real, mas, sim, um simulacro dele. Portanto, podem ser, ao mesmo tempo, assustadoras, estranhas, engraçadas, perturbadoras.
O começo de “Nejishiki” é um dos mais icônicos da história dos mangás e mostra um jovem saindo do mar, ferido no braço por uma água-viva, em busca de um médico. Ele encontra diversas pessoas enquanto perambula por uma cidadezinha. Tenta de todas as formas se tratar, mas fatos cada vez mais estranhos o impedem de chegar ao objetivo.
Cartaz do filme Neji-Shiki, de 1997, estrelado por Tadanobu Asano (astro de Xógum: A Gloriosa Saga do Japão). Esta é uma das várias versões da HQ para outras mídias.
São várias as simbologias e temas abordados direta ou indiretamente. A página inicial faz referência à Segunda Guerra Mundial, com um bombardeiro sobrevoando a praia, nuvens que mais parecem fumaça de explosões e obstáculos contra navios inimigos. Aparece depois um burocrata de terno e gravata. O garoto caminha por cortiços desertos, cercados por fábricas e ferrovias (talvez a representação da aposta do governo japonês na industrialização pesada pós-1950). O folclore local marca presença, assim como um sentimento de isolamento e não pertencimento – culpa da cultura estadunidense que esmagava as tradições locais? Repressão e pulsão sexual, o mar como elemento de nascimento (e de morte), orfandade, a solidão do indivíduo contemporâneo: tudo isso, e não só, está lá, de modo mais ou menos claro.
E a melhor forma de encarar “Nejishiki” é não tentar tabular seus significados. Esqueçamos uma hipotética chave de interpretação que irá permitir ao leitor entender, em minúcias, o que Tsuge buscava com a obra – como visto, nem ele pretende ter a resposta. O autor estava interessado em outras questões: contar histórias que não fossem “histórias”, criar quadrinhos que não fossem “quadrinhos”. De repente, era possível produzir quadrinhos com a ajuda de estruturas e linguagens diferentes, como a da poesia, do ensaio visual, do cinema experimental, da justaposição de imagens. A HQ se insere facilmente nos movimentos artísticos de vanguarda daqueles tempos, marcados pelas provocações intelectuais dos cinemas novos ao redor do mundo, do nouveau roman, da pop art.
Na primeira publicação de “Nejishiki” nos Estados Unidos – em fevereiro de 2003, na edição número 250 da revista The Comics Journal –, o crítico Bill Randall escreve:
Se Hergé, Tezuka e Kirby definiram as tradições das HQs de suas respectivas culturas, então Tsuge fez o mesmo por toda uma contracultura. Ele descobriu uma voz de solidão, alienação e de um desespero sorridente com a qual o Japão pós-guerra não estava acostumado em sua tentativa de se reinventar. A única figura comparável nos quadrinhos ocidentais seria Crumb. Ambos marginais, a busca de cada um por sua visão artística trouxe um grau de celebridade que os dois recusam e também hordas de imitadores. […]
Mas se “Nejishiki” oferecesse nada mais que um comentário sobre o Japão pós-guerra, permaneceria somente como uma peça empoeirada de museu. Ao contrário, sua narrativa única, e realmente poética, coloca-a num lugar fora do tempo, como uma peça de Samuel Beckett. […] A poesia que Tsuge oferece fala de forma eloquente sobre estar sozinho num mundo que mudou. Qualquer pessoa em qualquer lugar entende isso.
Thiago Borges é jornalista, editor do blog O Quadro e o Risco e coapresentador do podcast Krazy Kazt.