Cecilia Capuana: “As conquistas das mulheres estão sempre em risco”

Prestes a embarcar para o Brasil, onde participa da Bienal de Quadrinhos de Curitiba e de lançamento na loja Monstra, Cecilia Capuana conversou com a Veneta sobre quadrinhos, cinema e feminismo
20 de março de 2025 por
Cecilia Capuana: “As conquistas das mulheres estão sempre em risco”
Editora Veneta

Por Leticia de Castro


Quadrinista, pintora, militante estudantil, feminista. São vários os atributos de Cecilia Capuana. A artista italiana radicada na França tem seu primeiro livro, Curiosidade, lançado no Brasil em setembro, reunindo HQs publicadas originalmente na Ah! Nana, revista que revolucionou o mercado dos quadrinhos nos anos 1970 com sua equipe composta exclusivamente de mulheres. Conversamos com Capuana sobre essa experiência, que marcou a história dos quadrinhos, sua obra e a expectativa para o Brasil.

Cecilia Capuana, década de 1970. Acervo pessoal


Como você começou no mundo dos quadrinhos e o que a motivou a se tornar quadrinista?

Durante o maio de 68 militei em um grupo de esquerda nascido do movimento estudantil; vivíamos em uma comuna de artistas. Marco Bellocchio, o cineasta diretor de De Punhos Cerrados (1965), estava conosco também, além de vários artistas burgueses arrependidos, que buscavam novos modos de expressão.

Com meu ex-marido, Marco Rossati, fizemos um enorme retrato de Mao que desfilou na manifestação do 1º de Maio de 1968. Para a ocasião, também fizemos cartazes, bandeiras e uma espécie de cantastorie* política que percorreu povoados do sul da Itália.

Passado aquele período, decidimos criar um jornal político-satírico com um grupo de amigos. A inspiração era de um jornal antifascista dos anos 1920, chamado Becco Giallo. O nosso acabou se chamando Becco Rosso, mas não chegou ao segundo número. Com a história “Rêve”, destinada a esse segundo número, entrei em contato com a redação da Métal Hurlant, que na época estava preparando Ah! Nana, uma revista feita por mulheres, e incluíram a minha história já no primeiro número.

Quais foram suas maiores influências artísticas e literárias na juventude?

Na Academia, estudei com os artistas mais influentes daquele período em Roma: Ziveri, último representante da Escola Romana; Maccari, pintor satírico de espírito anárquico; e Guttuso. Mas minha preferência era o figurativo, o expressionismo alemão mais extremo, o surrealismo, sobretudo Giorgio de Chirico, e também os simbolistas alemães. Eu lia os americanos (Capote, Faulkner, Kerouac…), Tchékhov, Tolstói. No campo dos quadrinhos, lia Chester Gould, Crumb…

Ah! Nana é um caso muito raro no mercado de quadrinhos europeus? Como foi que ela pode surgir em um ambiente que era tão machista?

Nos anos 1970, havia em toda parte um espírito de pesquisa, e era possível propor conteúdos e formas novas. O feminismo era uma espécie de cartão de visita. Até mesmo as revistas femininas mais tradicionais queriam desenhos e artigos de tom engajado, em favor das lutas das mulheres.

A senhora abordou temas caros ao movimento feminista nas suas histórias, como o divórcio e o direito ao aborto. O divórcio tornou-se uma realidade no mundo inteiro, mas o direito ao aborto ainda é objeto de disputas, tanto em países que ainda não legalizaram o acesso, como o Brasil, quanto naqueles que já haviam legalizado. É o caso da Itália, que legalizou o aborto em 1978, mas no ano passado aprovou uma lei permitindo que grupos antiaborto façam ativismo nos centros onde são realizados os procedimentos. Nos Estados Unidos, em 2022, a Suprema Corte reverteu a decisão judicial que garantia o direito ao aborto em todo o território, tornando a decisão estadual. Como a senhora encara isso?

Para as mulheres, o evento do aborto é doloroso além da medida, mesmo quando pode ser necessário. Também na Itália e nos outros países onde o aborto foi regulamentado, as conquistas estão sempre em risco. A cultura católico-conservadora se apoia no sentimento de culpa das mulheres. O tema da escolha individual, informada e livre me parece crucial.

Trecho da HQ "Curiosidade"


Como o contexto político e social da Itália e da França influenciou suas histórias e personagens?

Sou italiana, em particular siciliana, portanto era especialmente sensível às lutas feministas. Desejava sobretudo ser eu mesma como pessoa e desenvolver minhas potencialidades como artista.

Como você vê a participação de mulheres no mercado de quadrinhos atualmente?

Vejo que, em relação ao passado, as mulheres e sua maneira de interpretar o mundo estão hoje mais presentes no panorama visual. Inclusive de forma organizada, com festivais, exposições e prêmios dedicados às autoras. Na França, acompanho com interesse os trabalhos da Associação Artemisia, dirigida por Chantal Montellier, antiga companheira desde os tempos da Ah! Nana.

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                               "O Processo" e "Bruxas, Minhas Irmãs", de Montellier

                             


Com Chantal Montellier e Pascal Merieu, organizador do Festival de Amiens. Acervo pessoal


A poeta brasileira Alice Ruiz, autora de Afrodite: Quadrinhos Eróticos, disse em entrevista recente ao blog da Veneta que acha que dos anos 1970 (quando ela escrevia roteiros para quadrinhos eróticos libertários) para cá “os libertários se tornaram mais livres e os puritanos mais caretas”. Você concorda com isso?

Os movimentos libertários se desenvolveram segundo uma trajetória histórica natural, voltada para os direitos das mulheres e das minorias. Os conservadores não se tornaram mais rígidos: já o eram de forma obsessiva nos anos 1970. Eles simplesmente não se moveram de suas posições.

Você publicou na Alter Linus, dirigida por um nome muito importante dos quadrinhos italianos: a editora Fulvia Serra. Como foi trabalhar com ela?

Mulher inteligente e sagaz, Fulvia Serra ficou com ciúmes porque publiquei uma história em quadrinhos com um texto de Zapponi em uma revista concorrente, Comic-Art. Zapponi, depois, em um artigo, havia a definido como a “abadessa dos quadrinhos”, e como ela não tinha auto ironia, não quis publicar minha história. Esse foi o meu último quadrinho.

Como se deu sua aproximação com os cineastas Mario Monicelli e Federico Fellini? E como Moebius entrou na história?

Mario Monicelli foi um grande amigo, meu guru, irônico e profundo. Sua morte me deixou muito triste. Com Mario e sua companheira — também desenhista — passávamos os fins de semana no campo, na Toscana. Federico Fellini também amava os quadrinhos, e ele mesmo era um formidável desenhista. Eu o conheci graças ao seu roteirista, Bernardino Zapponi, que sempre considerei meu pai espiritual, grande conhecedor de quadrinhos americanos. Ele foi o nosso mestre no período posterior ao Becco Rosso.


Com Federico Fellini e Moebius, década de 1970. Acervo pessoal


Em um desenho que você fez de Fellini ele parece estar sendo perseguido e zoado pelas personagens de seus filmes. A maneira como Fellini retratou as mulheres te influenciou de alguma maneira?

Federico era um homem que amava as mulheres à sua maneira. Sua visão das mulheres continua sendo a de um personagem do passado. De qualquer forma, ele foi o nosso grande e absoluto gênio no cenário cinematográfico. Ele adorava quadrinhos franceses e a Métal Hurlant, especialmente Moebius. Eu era a conexão entre os franceses e ele: então organizei o encontro deles. Moebius chegou a Roma e foi recebido com todas as honras pelo diretor. Criei uma curta história em quadrinhos sobre esse encontro, que ainda não foi publicada!


Tira de Cecilia Capuana que retrata o cineasta Federico Fellini. Acervo pessoal


A partir dos anos 1980 você foi diminuindo sua produção para os quadrinhos. Por que?

Publiquei em revistas italianas, que eram poucas, mas com a crise da Métal Hurlant e seu consequente encerramento, minha relação com os franceses se distanciou e comecei a fazer ilustrações e retratos por encomenda.

Nas últimas décadas, a senhora tem se dedicado à pintura. Pretende retomar a produção de quadrinhos? Quais são os seus projetos atualmente?

Nos últimos anos, criei livros ilustrados: Il Corteo di Dioniso [O Cortejo de Dionísio] (2009), publicado pela La Lepre Edizioni, baseado em um conto de Vincenzo Consolo; Gradiva (1903), uma releitura do conto de Wilhelm Jensen que inspirou Sigmund Freud, publicado pela Donzelli; uma história em quadrinhos sobre a vida do pintor Giorgio de Chirico, um livro colorido de cem páginas encomendado pela Fundação que administra os arquivos do pintor e que ainda está à procura de uma editora!

Quais quadrinhos você está lendo agora? Poderia compartilhar com a gente?

Gosto de ler histórias em quadrinhos criadas por mulheres e acompanho a cerimônia de premiação do grupo Artemisia, liderado pela minha colega Chantal Montellier. A consciência feminina está avançando, mas a violência dominada pelos homens continua.

Quais são suas expectativas para a visita ao Brasil? Tem algo em especial que você gostaria de conferir?

Visitar o Festival de Curitiba será uma oportunidade de enriquecimento e intercâmbio, e tenho certeza de que as atividades que realizarei em São Paulo, coordenadas pelo Instituto Italiano de Cultura, me colocarão em contato com histórias e pessoas inspiradoras. Sou particularmente grata à editora Veneta pela publicação do meu livro, Curiosidade.

*espécie de trovador, repentista, um contador de histórias itinerante


Leticia de Castro é jornalista e diretora editorial da Veneta e do selo infantil Oh! Outra História.


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