Por Clara Rellstab
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Em uma tarde qualquer, o mangaká Yoshiharu Tsuge cochilou sobre o telhado de uma loja de ramen vizinha ao seu apartamento. Como morava no segundo andar, tinha o hábito de sair pela janela, esticar um colchonete e descansar ao ar livre. Naquela tarde, diz ter sonhado durante a siesta. O sonho virou gibi. E, depois desse gibi, nada mais ficou no lugar no cenário dos gekigás, os chamados mangás adultos do Japão.
A história que surgiu daquela soneca começa com um garoto que sai do mar com um ferimento causado por uma água-viva. Ao fundo, um bombardeiro cruza o céu cor de laranja. Nas páginas seguintes, em busca de um médico que possa dar um jeito de estancar o sangue que jorra de um dos seus braços, o menino vaga por cortiços, viaja de trem e encontra uma mulher que ele desconfia ser a sua mãe. Elementos do folclore japonês são mesclados a imagens da ocupação americana, numa paisagem que parece oscilar entre pesadelo e profecia. Há um sentimento constante de deslocamento, como quem acorda no meio de um sonho e tenta, em vão, lembrar o que aconteceu.
Nejishiki é uma das onze histórias reunidas no livro homônimo lançado este ano pela editora Veneta (o título pode ser traduzido como “estilo do parafuso”, mas também é conhecido no Ocidente como “Screw Style”). Com tradução de Luis Libaneo, prefácio de Thiago Borges e apresentação de Rogério de Campos, a publicação apresenta ao público brasileiro uma seleção inédita de obras de Tsuge, autor fundamental para entender a virada subjetiva, política e estética do mangá japonês. Até agora, só uma de suas obras tinha sido publicada no Brasil, O homem sem talento, que chegou aqui pela mesma editora em 2023.
Yoshiharu Tsuge nasceu em 1937, em Tóquio. Estreou ainda jovem no mercado editorial japonês, com a HQ Hakumen Yasha [O demônio da máscara branca], publicada em 1955 para o circuito kashihon, sistema de aluguel de livros que democratizou o acesso à leitura no pós-guerra. Trabalhou nessa rede por quase dez anos, produzindo em ritmo industrial (ele chegou a desenhar mais de mil páginas só em 1960), até ser recrutado como assistente de Shigeru Mizuki, mestre do mangá de horror e do folclore. Só que, para alcançar o protagonismo e a voz que lhe são característicos, ele precisou de um empurrãozinho: o surgimento da revista Garo.
Clara Rellstab é jornalista, roteirista e repórter do Uol.