Um mergulho onírico e brutal de Yoshiharu Tsuge

Nejishiki é destaque no jornal "O Povo", de Fortaleza
18 de abril de 2025 por
Um mergulho onírico e brutal de Yoshiharu Tsuge
Editora Veneta
Por Lucas Jansen


Publicado originalmente em O Povo, em 25/08/25.


Algumas obras não apenas atravessam o tempo; elas o moldam. É o caso de Nejishiki, de Yoshiharu Tsuge, publicado originalmente em junho de 1968 na influente revista japonesa underground Garo.

Mais de cinco décadas depois, a história permanece tão desconcertante quanto provocadora, um clássico da contracultura japonesa que rompeu fronteiras estéticas e temáticas.

Lançado no Brasil pela editora Veneta, o volume reúne a célebre narrativa-título e outras dez histórias curtas do autor. São contos que transitam entre o real e o onírico, combinando traços de surrealismo, introspecção e uma crueza, assinaturas incontestáveis de Tsuge.

O que começa com uma premissa aparentemente simples, um jovem ferido por uma água-viva que vaga em busca de tratamento médico em um vilarejo, se transforma em um percurso inquietante sobre deslocamento, alienação e fragilidade humana.

arte de Tsuge é direta, por vezes bruta, mas profundamente expressiva. Seus desenhos oscilam entre cenários detalhados e personagens de contornos quase esquemáticos, criando um contraste deliberado que potencializa o estranhamento. Essa estética reforça o sentimento de suspensão entre sonho e realidade que permeia em todas as histórias.

Outro elemento marcante em “Nejishiki” e nas demais histórias é a presença da violência não apenas física, mas social e psicológica. Tsuge constrói um retrato implícito de um Japão pós-guerra duro e indiferente, onde a marginalização, a precariedade e o abandono se entrelaçam.

A violência contra a mulher, tratada de forma quase banal em alguns contos, também provoca desconforto proposital. Nada, entretanto, é gratuito. A brutalidade revela a complexidade emocional dos personagens e as tensões sociais vivenciadas do período em que as histórias foram escritas.

As narrativas frequentemente parecem fragmentos de sonhos, diálogos desconexos, tempos dilatados e cenas que oscilam entre fantasia e desespero. Histórias como “Desejo na Chuva” trazem atmosferas confusas, quase etéreas, enquanto “Inchaço de Fora” mergulha em questões íntimas como ansiedade e depressão.

Tsuge trabalha na fronteira entre realidade e delírio, sem oferecer respostas fáceis, fazendo um convite à interpretação e ao desconforto.

Desde sua publicação, “Nejishiki” provocou reações intensas. Foi estudado por psicólogos, acadêmicos, escritores e artistas, inspirou outros quadrinistas, videogames e até uma adaptação cinematográfica em 1998.

Ler “Nejishiki” hoje é compreender por que Yoshiharu Tsuge permanece uma das vozes mais singulares dos quadrinhos japoneses. Sua capacidade de equilibrar estranheza, introspecção e crítica social coloca sua obra em um território próprio, um espaço em que o leitor se vê forçado a confrontar o desconforto.

É um mangá para quem busca mais do que narrativas lineares: um convite para mergulhar nas ambiguidades da memória, dos sonhos e da condição brutal humana.


Jansen Lucas é coordenador de criação no O POVO, publicitário, formado em design e artista visual. Apaixonado por quadrinhos, cinema e literatura, dedica-se a escrever sobre cultura e publicações do Ceará e do mundo. Com um olhar criativo e crítico, explora as conexões entre arte, narrativa e mídia em suas produções.​


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Um mergulho onírico e brutal de Yoshiharu Tsuge
Editora Veneta 18 de abril de 2025
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