Verdades e mentiras de Flavio Colin

Entre o delírio e a resistência: o traço de Flavio Colin e a invenção de um Brasil fantástico nos quadrinhos.
22 de outubro de 2025 por
Verdades e mentiras de Flavio Colin
Editora Veneta

Por Daniel Salomão Roque


Vizunga, segundo consta, é um vocábulo indígena que significa “irmão”. Quem me disse foi Parsifal, reivindicando a alcunha durante um jantar em Copacabana. Não sei se a informação procede, nem se ele tinha todo esse prestígio entre os kalapalos do Alto Xingu. Pouco importa. Ali na mesa, ao imaginá-lo tomando banho com a mais bela moça da aldeia e explodindo crocodilos para salvá-la da morte, entendi que a verdade pulsava em cada um daqueles delírios.

Meus amigos sentiram o mesmo — do contrário, não lhe teriam oferecido uma carona de volta até o Leme. Nosso automóvel avançava pelo asfalto, debaixo da lua cheia; por um momento, me esqueci de Sônia e seus telefonemas insones. Durante o trajeto, eu só conseguia olhar as têmporas daquele sujeito, vislumbrando em sua calvície uma síntese de todas as joias ambicionadas por Flavio Colin.

Vocês sabem, Colin foi grande. Para muitos, o maior. E há quase uma década brilhava como operário das artes. Ele fornecera identidade brasileira ao Anjo, detetive surgido como playboy ianque em radionovelas de Álvaro Aguiar — e agora, graças aos gibis da RGE, o personagem corria atrás de malfeitores na Ilha das Pedras Brancas, no Corcovado, na serra catarinense e no interior paulista, sem nunca abrir mão de um bom cigarrinho.

Já nas mansões góticas de uma Europa auriverde, tudo ia mal. Vampiros barbarizavam donzelas, fantasmas se vingavam dos vivos, e demônios tentavam os homens com o sabor da transgressão, abreviando-lhes a existência rumo ao nosso destino inexorável — os subterrâneos da necrópole, onde cedo ou tarde engrossaremos a horda proletária dos zumbis. Colin, a serviço da editora Outubro, regia esse inferno com trevas de nanquim — mas era temido por outros motivos.

Nunca esquecerei seu desprezo pelos lacaios de collant. Batman, Homem-Aranha, Capitão América, Superman: agentes do Império, xerifes do planeta, michês do empresariado. “Somos mais inteligentes e temos mais noção de ridículo”, ele costumava dizer.[1] Ainda que amasse Milton Caniff e Alex Raymond, o envolvimento na luta pela nacionalização dos quadrinhos lhe valeria a fama de anti-estadunidense — sina perigosa para quem vive sob uma ditadura entreguista.

Maurício de Sousa esteve ao seu lado: “Temos material humano, técnico, artistas, argumentistas e editores que podem fazer revistas melhores que as importadas”, declarou. “Revistas de faroeste são as mais difundidas, pagas na base do dólar. Poderíamos substituí-las por aventuras de gaúchos, vaqueiros, garimpeiros, seringueiros e outros tipos nacionais, economizando divisas que nos fazem falta”.[2] 

Desde então, Colin mal sobrevivia aos boicotes. Maurício ia muito bem, obrigado: sua distribuidora espalhara Mônicas pelas bancas de todo o país, e nos últimos anos vinha agenciando colegas para a Folha de S. Paulo. Se ele desse uma chance ao amigo, pensei comigo mesmo, talvez o segurasse por mais tempo nas HQs.

Vizunga era a fagulha que precisávamos. Quando o conheci, vagando pela Avenida Atlântida naquela tarde quente de 1964, mirei em seus olhos a expressão de um Brasil moderno. Entre chopes, ele discorria sobre um peixe de noventa quilos, um ataque de tubarões, uma caçada a elefantes na África — e na sua presença, eu me tornava, como a praia, um personagem de tiras diárias. 

Sim, as ondas se quebravam na areia. Sim, gaivotas perseguiam o sol. E sim, os edifícios se enfileiravam para disfarçar a mesquinhez da vida urbana. Colin foi generoso com nosso horizonte, mas sua conta bancária permaneceu no vermelho. Dois anos depois, ele nos trocou pela publicidade e eu deixei de existir. É bom estar de volta.


[1] Entrevista a Samir Naliato, no Universo HQ. Disponível em: https://universohq.com/entrevistas/flavio-colin-uma-lenda-viva-dos-quadrinhos-e-brasileiro-com-orgulho/.

[2] “Presidência da República enviou um assessor à reunião dos desenhistas”. Correio Paulistano, São Paulo, ano 107, n. 32284, p. 7, 22 jun. 1961.


Daniel Salomão Roque é jornalista. Colaborou com veículos como VICE, BBC Brasil e Folha de S. Paulo


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Verdades e mentiras de Flavio Colin
Editora Veneta 22 de outubro de 2025
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