Rosie na Floresta: o imperialismo é pervertido
Por Lane Yates*
Tradução de Rômulo Luis
Este texto foi publicado originalmente na revista digital Solrad, em 08 de julho de 2021.*
Sem muito exagero, pode-se dizer que é um instinto inato dos cidadãos de grandes impérios ocidentais pensar que o resto do mundo é, ao mesmo tempo, seu playground e sua propriedade. Sem hipocrisia, podemos dizer também que grande parte da tradição artística ocidental segue a mesma linha de pensamento.
Isso é de conhecimento comum, eu imagino; mas há discussões espinhosas questionando se a representação narrativa desse fato está correta do ponto de vista de um cidadão do projeto imperial ocidental. Muitos apreciam filmes como Aguirre, a Cólera dos Deuses ou Fitzcarraldo por apresentarem o projeto colonial como fetichista e extremamente violento, enquanto outros têm críticas às visões desse projeto que partem justamente dos descendentes do império.
Basicamente, existe uma divisão entre o reconhecimento dos fatos e a implementação de uma premissa. Quão eficaz ela pode ser? O que há para se dizer e que terreno pode ser explorado que ainda não tenha sido coberto por outras pessoas que se beneficiaram deste projeto de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente, explícita ou implicitamente? Para ser um pouco mais redutivo, o mais provável é que seja uma questão de gosto, se você gosta ou não da ideia de exploração colonial como premissa para um quadrinho de comédia.
Rosie na Floresta, de Nathan Cowdry, segue o trio formado por Rosie, Denton (um cãozinho) e Zé Calcinha (a calcinha de Rosie) em uma expedição para a América do Sul, visando contrabandear drogas de volta pro Reino Unido. Denton está sendo usado de mula por Rosie, por quem está apaixonado. A narrativa, em sua maior parte, acontece como um flashback de Denton para uma detetive que investiga o narcotráfico em Bogotá.
Ao longo da história, ele revela que o grupo estava em um avião que caiu sobre a Amazônia, que foram os únicos sobreviventes e que, em sua jornada para serem resgatados, houve um conflito entre ele e Zé Calcinha pelo afeto de Rosie, que resultou em Denton sendo estripado. Dá pra ver que o negócio é bem extremo. No entanto, as reviravoltas da trama são o aspecto menos interessante de Rosie na Floresta. Mais significativa é a conversa da HQ com o tema do imperialismo e como as pessoas interagem com ele. Mais explicitamente: como as pessoas brancas interagem com ele.
Após o acidente, Denton desmaia na selva. Ele sonha que ele e Rosie estão no Vietnã, assassinando violentamente vietcongues. É uma sequência meio enlatada, clichê, e acho que há boas razões para dizer que foi intencionalmente pensada assim. Em um fac-símile de todos os filmes sobre Vietnã já feitos, apreciados e aclamados pela crítica (incluídos os insultos raciais), o leitor consegue ter uma noção do subconsciente imperialista de Rosie e Denton. Eles não estão no Vietnã – na verdade, eles nem sabem onde estão. E é justo dizer que provavelmente nem se importam. O instinto dos dois é a violência. A própria cena de abertura é, também, uma reiteração temática da crítica ao imperialismo e ao turismo cultural – uma constrangedora sequência de sexo entre dois cristãos, celebrando seu casamento em um passeio de barco pelo rio Amazonas, onde se conheceram anos antes em “uma missão para trazer ajuda humanitária às tribos selvagens desta terra.”
Isso tudo demonstra como as opiniões de Cowdry sobre seus personagens são declaradas explicitamente. Todos os protagonistas são, de uma forma ou de outra, oportunistas. Denton é um grande tarado e Rosie, uma materialista insípida. Na verdade, as únicas figuras em que se nota alguma dignidade ou sanidade são os nativos do continente, embora eles apenas ocasionalmente digam algo, e essencialmente sirvam apenas como instrumentos para mover a trama.
Existe uma certa força nessa declaração, já que há muito pouco espaço para que o enredo se torne confuso ou para que o público tenha alguma outra explicação de por que exatamente os personagens centrais são tão deploráveis. Eles são deploráveis porque são britânicos, simplesmente. Mas Denton e Rosie não sabem que são horríveis. Eles sequer se importam o suficiente para pensar no que estão fazendo. Para eles, é um crime sem vítimas, e a aventura é romântica o suficiente.
Para Rosie, é meio sexy perambular pelo mundo e fazer seu cachorro engolir um tijolo de cocaína para passar pela alfândega. Ela inclusive se gaba disso para todas as suas amigas em uma das cenas. O que mais ela poderia fazer; arrumar um emprego normal em um escritório? Mesmo após o acidente, depois de Denton ser esfolado vivo por Zé Calcinha, depois de ela sobreviver por pouco a uma doença fatal no meio da selva, Rosie dificilmente reflete sobre a natureza doentia de toda essa empreitada.
Na aldeia Nabu, ela se apaixona pelo Príncipe Puju e tenta convencê-lo a voltar para o Reino Unido com ela, só para que, logo depois, ele seja violentamente assassinado por Zé Calcinha, enquanto os dois remam pelo rio Amazonas. Não fica claro se em algum momento ela vai tirar alguma conclusão de tudo isso, mas não parece provável, dado o que sabemos sobre a personagem.
Os detalhes também são bastante sutis e apontam para os efeitos da cultura ocidental na mente de seus cidadãos. Rosie assiste religiosamente ao programa Britain’s Got Talent, Denton se masturba com pornografia intencionalmente racista, feita para excitar aqueles que se identificam como “progressistas”, Rosie dá uma surra em um salva-vidas na praia por obrigá-la a vestir roupas, os personagens usam camisetas de bandas dos anos 90 como Korn e Counting Crows, etc; há vários outros detalhes do tipo, deixando clara a conclusão de que a cultura ocidental é inerentemente perversa.
Certamente, o estilo visual da HQ é uma referência à história do imperialismo ocidental nos quadrinhos. Tudo é limpo e simplificado. Os personagens parecem saídos de broches personalizados ou tiras antigas da Disney. Tanto narrativamente quanto no estilo da “Linha Clara”, característico de Hergé, o livro funciona como um Tintim contemporâneo. Trata-se, afinal, de uma aventura colonial entre um humano e seu cachorro. E, finalmente, todos os personagens parecem desconfortavelmente pré-púberes. Cabelos curtos, rostos de boneca e seios de tamanhos estranhamente uniformes, há um desconforto na hipersexualização da figura feminina de Cowdry presente em toda a obra.
Holisticamente, temos informações temáticas suficientes para que isso seja interpretado como uma extensão da natureza pervertida do projeto imperial ocidental e, claro, do cânone ocidental das histórias em quadrinhos, o mesmo que serve, protege, interpreta positivamente e fortalece este projeto. Se a questão é se Rosie na Floresta, de Nathan Cowdry, está defensavelmente consciente das implicações de sua narrativa, se há tecnologia narrativa suficiente em ação para nos levar à conclusão de que o projeto imperialista é deplorável (como visto pelos olhos do autor), então a resposta definitivamente é “sim”.
A cena final é tranquila. Rosie está jogando um jogo de tiro ambientado no Vietnã, presumivelmente onde Denton obteve a inspiração pro seu sonho na sequência anterior. Ela faz uma pausa para ir ao banheiro, onde esfrega os olhos e se olha no espelho sem entusiasmo. Então ela volta pra cama, para ficar sentada no escuro assassinando vietcongues renderizados virtualmente. O último quadro da história é uma pergunta: “jogar de novo?”. O cursor paira sobre o “sim”. Não fica claro se isso acontece antes ou depois da expedição à América do Sul. Da última vez que o espectador viu Rosie antes disso, ela estava a bordo de uma jangada com o Príncipe Puju e Zé Calcinha assassinados. Mas isso não importa. O projeto colonial se repetirá de novo, de novo, de novo e de novo? A resposta também é “sim”.
Se há uma justificativa para livros como Rosie na Floresta é que o projeto do imperialismo está sempre em andamento, e se aqueles que são diariamente inundados por uma cultura que serve, protege, interpreta positivamente e fortalece este projeto forem questionados se o farão de novo, a resposta sempre será “sim”. Vai parecer diferente em alguns aspectos, e quase certamente surgirão diferentes linhas discursivas empenhadas em validar este projeto, mas, no final das contas, a resposta sempre será “sim”. E eu concordo, pessoalmente, que a resposta será “sim”.
Se é isso que Cowdry está dizendo com Rosie na Floresta, eu concordo. Se a posição da pessoa que faz a pergunta inibe a veracidade dessa pergunta, em sua violência e perversão horripilantes, pra mim é difícil dizer. Eu também, provavelmente, não sou a pessoa certa para responder, ou a pessoa certa para interpretar esta pergunta. Tudo o que sei é que tanto eu quanto o autor nos beneficiamos dessa estrutura, apesar de estarmos cientes disso, então hesito em conceder muitos elogios ao simples reconhecimento do projeto imperial e seu núcleo repugnante.
A pergunta que Cowdry está fazendo em Rosie na Floresta é desenvolvida minuciosamente. É defensável. Se você está ou não interessado em defendê-la, mais uma vez, depende de você. Como disse, eu sou a pessoa errada para responder isso.
*Quadrinista e crítico da Solrad e do Comics Journal.