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Terrorvision e a natureza do filme trash

O que James Joyce e o cinema trash têm em comum? Em sua primeira coluna para o blog da Veneta, Juscelino Neco analisa alguns clássicos filmes B e nos aponta esse surpreendente paralelo

 

Texto e ilustrações: Juscelino Neco *

 

A ultrasegmentação dos bens de consumo tem originado produtos bastante curiosos. Quem acompanha o mercado gringo certamente deve ficar surpreso com o tratamento luxuoso que selos como a Scream Factory tem dado a podreiras do naipe de Chamas da Morte, A Noite do Cometa e Ninja III – A Dominação. E para aqueles que não dispõem das condições materiais para investir dólares nessas maravilhas do mundo moderno, o mercado nacional tem ótimas opções de selos que dão um tratamento correto a filmes errados. A Dark Side (não confundir com a editora), por exemplo, tem investido nesse mercado com um comprometimento que beira o suicídio comercial. Vou resumir da seguinte forma: eles lançaram uma edição com três discos do cult e obscuro Hardware. Tem até um CD com a trilha sonora, juro.

E qual não foi minha surpresa quando me deparei com um box com os filmes A Visão do Terror e A TV dos Mortos-Vivos! A edição dessa double feature é de dar gosto, com luva, um encarte bem cuidado e dois cards. Quanto aos filmes, obviamente são horrorosos.

Cartaz do filme de 1986 de Ted Nicolaou

 A Visão do Terror (Terrorvision, 1986) é razoavelmente conhecido pelos amantes das produções, vamos dizer, peculiares. O plot, como muitos clássicos do cinema, é de uma simplicidade estonteante: um monstro plutoniano invade a terra a partir da TV de uma típica família disfuncional americana. Dito dessa forma, o conceito que norteia essa trama pode parecer meio idiota, mas é preciso colocar as coisas em contexto:  a década de 80 era idiota e o diretor/roteirista Ted Nicolaou (mais famoso pela série Subspecies – A Geração Vamp) não tem o menor escrúpulo em abraçar essa idiotice e a transformá-la numa coisa sua. Já na cena de abertura, Nicolaou estabelece um pacto silencioso com o espectador: se você tem abstração suficiente para olhar uma maquete feita com isopor e cartolina e, de alguma forma, aceitar que essa é a superfície de Plutão, esse filme será uma viagem maravilhosa.

Logo em seguida somos levados ao mundo comum de cada dia. Stan, pai de família e early adopter, está no quintal de casa tendo problemas em sintonizar a antena parabólica Do It Yourself 100 recém-adquirida. Subitamente a antena é atingida por um raio e começa a funcionar normalmente. O raio nada mais era que o monstro que, pouco antes, havia sido arremessado ao espaço pelo alienígena Plutar. Aparentemente, esse é o método utilizado em Plutão para se desfazer de detritos indesejados. Atentem, em 1986 o filme já discutia os problemas de manejo de resíduos sólidos. Daí em diante, o monstro vai fazer aparições na TV, devorar os moradores e aprender sobre a cultura na terra. Não necessariamente nessa ordem.

Esse monstro alienígena certamente é o elemento que conduz nossa trama. É ao mesmo tempo o incidente incitante e o protagonista, algoz e vítima, animal de estimação e destruidor de mundos. Na década em que os efeitos especiais práticos, a maquiagem e o design de criaturas atingiu seu auge, a criatura é de uma feiura e tosqueira inigualável. A única forma de descrevê-lo é como um tonel de comida enlatada para cachorros ao qual foram adicionados, de forma randômica, olhos e dentes. Mas veja bem, isso combina perfeitamente com o tom do filme, uma homenagem aos filmes B clássicos que passam incessantemente na TV da casa. Inclusive, lá pelas tantas, aparece o peru gigante do filme The Giant Claw (1957) e o macaco com escafandro Ro-man (Robot Monster, 1953), reconhecidamente dois dos piores designs de criatura da história da civilização ocidental. É quase como se esses monstros da era atômica, pais fundadores da picaretagem de baixo orçamento, passassem a tocha para sua versão MTV. Inclusive, Albert Band, produtor dessa pérola e de tetéias como Re-Animator (1985) e Do Além (1986), parece ter a clara intenção de levar a frente o legado dos filmes B de Roger Corman.

Uma típica família americana em cena de A Visão do Terror

Mas afinal, o que é essa ameaça que vem do espaço, toma de assalto nossos eletrônicos e desestabiliza o funcionamento do núcleo familiar? Uma interpretação comum dos filmes de terror é que eles refletem medos e preocupações da sociedade. A analogia entre os filmes de invasão alienígena e o contexto de paranoia da Guerra Fria é bastante difundido, mas essa leitura pode ser utilizada para uma gama de outros filmes. Em A Visão do Terror, o monstro representa o medo inconsciente de que a televisão funcione como um elemento disruptivo, isolando os indivíduos, estimulando o voyeurismo e uma estetização da violência enquanto promove a desagregação dos valores familiares que norteiam a sociedade. David Cronenberg, no clássico Videodrome – A Síndrome do Vídeo (1982), já havia abordado esses temas com muita elegância e efeitos especiais de primeira linha. Ted Nicolaou tenta fazer o mesmo usando os recursos que tem à mão: picaretagem, luzes neon e total falta de bom senso.

De fato, a família representada no filme já foi corrompida pelos raios catódicos. Eles brigam o tempo todo, até para decidir que programa assistir. Suzy, a filha mais velha e vítima da MTV, se veste como uma Cyndi Lauper viciada em crack. O avô, um velho sobrevivencialista que guarda um arsenal de armas no seu bunker caseiro e acredita que rabos de lagarto são uma ótima opção de proteína, tem sua paranoia alimentada pelos telejornais da Era Reagan. Os pais, influenciados pelo ambiente de permissividade dos canais a cabo, trancam o próprio filho no quarto para tentar praticar swing em sua jacuzzi. Sherman, o filho caçula, é tão afetado pelos estímulos dos filmes de monstros que só consegue dormir a base de medicamentos. O monstro, nesse contexto, é a personificação de todo o mal que a TV pode trazer para o seio familiar, assim como o próprio filme é uma sofisticada alegoria da degradação da aura da obra de arte.

 

Ninguém consegue ser tão ruim por acaso

 

Isso nos leva a outra questão central em A Visão do Terror: a natureza extremamente artificial de toda sua estrutura fílmica. A trama é tão absurda, os diálogos tão deslocados, os personagens tão caricatos, a direção de arte tão esquizofrênica e o roteiro tão cheio de furos que, certamente, foi tudo intencional. Ninguém consegue ser ruim de forma tão consistente por acaso. Nesse sentido, o filme é uma obra metalinguística, onde a todo momento o diretor dá uma piscadinha e te lembra de que você está assistindo a um filme. Com efeito, o filme trash é uma das mais complexas produções do circuito de bens culturais e um objeto artístico que se adequa às mais diversas fruições.

 

O espectador pode se contentar em acompanhar a trama, mas os elementos que estão fora de campo sempre são tematizados, despertando as mais diversas questões: o diretor de fotografia é cego? Que drogas recreativas o roteirista utiliza? Quanto custou esse filme? 500 dólares? 100 dólares? Nada? Esses atores foram criados por lobos e desconhecem como humanos se comportam socialmente? Como um “profissional” da área de efeitos especiais não tem vergonha de fazer um monstro tão horroroso? Dito de outro modo, o filme trash coloca em primeiro plano a própria natureza do cinema, em seus aspectos técnicos, artísticos e de produção. Enquanto o filme tradicional tenta suspender a descrença, o filme trash atira no espectador suas inconsistências, suas falhas e sua bizarrice, estimulando uma recepção muito mais ativa, onde é preciso construir os mais sofisticados estratagemas lógicos para que a história faça sentido e para que sua esposa não ache que você é louco em gastar 40 reais num filme desses. Seja como for, A Visão do Terror é uma obra tão aberta, complexa e original quanto o Ulisses, de James Joyce, com a imensa vantagem que você só vai precisar investir 83 minutos do seu tempo.

Quanto a TV dos Mortos, o outro filme do box, ainda não tive tempo de assistir.

 

 

 

Juscelino Neco é autor de PARAFUSOS, ZUMBIS E MONSTROS DO ESPAÇO, ZUMBIS PARA COLORIR E MATADOURO DE UNICÓRNIOS. Escreve sobre games e cinema trash no blog, quando dá na Veneta.

 

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