Al Capp, Alain Resnais e o avô da CCXP

O criador dos Shmoos descobre o que é ser um "mito imortal" no maior evento de quadrinhos do mundo
29 de abril de 2025 por
Al Capp, Alain Resnais e o avô da CCXP
Editora Veneta

Em 1964, o cineasta francês Alain Resnais viajou para os Estados Unidos a fim de convidar alguns quadrinistas, entre eles Al Capp, para participar do Salone Internazionale dei Comics, que iria acontecer em fevereiro de 1965 em Bordighera, na Riviera Italiana. Naquele momento, Resnais já havia dirigido dois de seus filmes mais famosos: Hiroshima, Mon Amour (1959) e Ano Passado em Marienbad (1961), já havia ganhado alguns dos mais importantes prêmios do cinema europeu, era um astro da Nouvelle Vague (ainda que, a rigor, não fizesse parte do movimento) e tinha seu lugar garantido nas enciclopédias de cinema.  Mas Resnais era também um fã apaixonado dos quadrinhos, fundador e vice-presidente do pioneiro Centre d’études des littératures d’expression graphique (Celeg) e participava do comitê organizador do evento, junto com intelectuais como Umberto Eco. 

 O diretor francês Alain Resnais.

O Salone Internazionale dei Comics foi um sucesso e reuniu autores de quadrinhos da Europa e Estados Unidos, junto com boa parte da vanguarda intelectual italiana, incluindo celebridades como Federico Fellini. Transferido, em 1966, para a cidade de Lucca, foi por anos o principal evento de quadrinhos no mundo. Apesar do pioneirismo da Primeira Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos que o grupo liderado por Álvaro de Moya organizou na cidade de São Paulo em 1951, foi o Salão de Lucca que passou a ser a grande referência para outros eventos e a inspiração inicial para o Festival de Angoulême e até mesmo, em parte, para a Comic Con de San Diego (ou seja, é o avô da CCXP). O evento foi um impulso também para o lançamento meses depois da italiana linus, que se tornou a revista-símbolo daquele momento em que os quadrinhos passaram a ser reconhecidos como arte.

Mas, para Al Capp, o Salone foi um festival de desencontros. Para começar, por uma confusão de informações, Al Capp chegou no dia em que o evento  estava se encerrando e os outros convidados  já se preparavam para partir. A organização tratou de providenciar uma prorrogação especialmente para Al Capp, que teve a oportunidade de posar para fotos com escritores como Alberto Moravia e Carlo Levi. Mas o choque cultural fica evidente. Para Al Capp, já com os sintomas do direitismo avançado que provocaram o estranhamento da maioria de seus fãs e fizeram sua produção entrar em decadência, aqueles intelectuais europeus (e, de modo geral, esquerdistas) pareciam tolos pomposos. Irrita-se até mesmo com as tantas análises elogiosas ao seu trabalho. Odeia a “profundidade” que aqueles intelectuais enxergam no Brejo Seco.

Contra a afirmação de que teria criado o Ferdinando como uma crítica a ganância do capitalismo norte-americano, responde que trabalha por ganância própria, que a razão para criar a série foi a fome: “Eu estava com fome em 1934. Então criei o Ferdinando. Isso se tornou uma grande indústria e eu engordei bastante. Desde então minha motivação tem sido a ganância”.

Al Capp incorpora de maneira extrema aquela hostilidade à Europa que é um sentimento fundador dos Estados Unidos (e não só, e não, óbvio, sem muitas razões). Al Capp parece sentir aquela atenção da intelligentsia estrangeira como uma tentativa de invadir sua América.

A capa de um livro antologia do Ferdinando publicado em 1966, pela editora da revista linus.

Mas, no caminho de volta para casa, Al Capp lamenta não ter o mesmo reconhecimento nos Estados Unidos:

“Ter meus quadrinhos cheios de desenhos discutidos na Art Review, com tanta reverência quanto os quadrões vazios de Rothko! Isso melhoraria muito minha imagem com meus netos.”

Ao que o fotógrafo que o acompanha na viagem respondeu:

“Receio que seja verdade o que aquele crítico antiamericano disse no congresso: ‘classificar quadrinhos como uma subcultura é uma forma de preconceito que seu povo jamais superará’”.

E Al Capp termina parodiando cinicamente Martin Luther King Jr.: “Será que os meus iguais permanecerão para sempre cidadãos de segunda classe na democracia das artes e das letras? Não, nós superaremos isso”.

Como prova de que Al Capp exagerava bastante a falta de reconhecimento de seu trabalho pela mídia norte-americana, o texto em que ele conta essas suas peripécias na Itália foi matéria de capa da revista Life, com o título: “Minha vida como mito imortal”. Aqui, publicamos um trecho:

 

Nunca vi um filme da Nouvelle Vague francesa, por causa da minha convicção de que são todos roteiros de Doris Day filmados ao contrário: filme um roteiro de Doris Day ao contrário e você começará com Rock Hudson pulando da cama e se recusando a ser convencido a voltar. Este, pelo que entendi, é o enredo de todos os filmes da Nouvelle Vague.

No entanto, no verão passado, quando minha secretária me avisou da ligação de "um Sr. Allen Renay", reconheci instantaneamente o nome: Alain Resnais, um dos mais reverenciados diretores de cinema da Nouvelle Vague, queridinho dos Cinemas de Arte que servem café expresso no salão. Pedi para passar a ligação. Uma voz com forte sotaque disse: "Vim da França na esperança de vê-lo".

Mesmo sem saber exatamente por quais filmes Resnais era famoso, sempre me emociono ao conversar com qualquer celebridade, sobretudo com alguém que pensa que eu sou uma. Convidei-o para passar aqui.

Um jovem alto, magro e melancólico apareceu. Ele disse que estava tomado pela emoção de estar em minha presença. Bem, não me dizem isso com muita frequência. Para dizer a verdade, nunca me disseram. Eu estava tão emocionado que tudo o que me lembro foi o ponto principal da nossa conversa. Pelo que me lembro, foi mais ou menos assim: “Tudo o que sei sobre narrativas aprendi com o meu estudo do seu mito imortal”.

"Olha, na verdade eu faço uma tira de quadrinhos, o Ferdinando", eu disse.

"O único mito imortal da América", disse Resnais, "e a influência artística dominante da minha vida."

Pedi licença e, de outra sala, liguei para um produtor da Broadway que por acaso conheço. Eu não o via muito ultimamente porque ele estava saindo com uma garota que é louca por filmes estrangeiros. Perguntei a ele pelo que Alain Resnais era famoso.

Ano Passado em Marienbad”, ele disse.

"E como é o filme?"

"É o comercial de papel de parede mais longo do mundo."

Voltei a me juntar ao meu convidado. "É difícil acreditar que o homem que criou algo como Ano Passado em Marienbad pudesse ter estudado Ferdinando", eu disse, "e ainda assim ter criado algo como Ano Passado em Marienbad".

"Não sou o único", respondeu ele. "Na vanguarda dos círculos intelectuais europeus, o estudo de Capp é considerado tão vital para a dramaturgia criativa quanto Beckett ou Ionesco".

Comecei a me perguntar se Ano Passado em Marienbad não seria o melhor comercial de papel de parede do mundo.

"Grupos se formaram em Paris, Roma e Bruxelas para estudar seu mito e sua mente. Colecionamos cada parte de seu gigantesco mosaico, desde a primeira aparição em agosto de 1934. A sofisticação e a universalidade de Ferdinando transcendem o bairrismo e a ingenuidade de obras inferiores como Huckleberry Finn."


Trailer de O Ano Passado em Marienbad (1961), com Delphine Seyrig e Giorgio Albertazzi.


Em geral fico furioso quando alguém menospreza Mark Twain, mas Resnais tinha um jeito especial de falar. A resposta mais agressiva que me veio à mente foi: "Ah é?".

Resnais se levantou. "Eu preciso ir", disse ele, relutante, "Tal adoração deve embaraçá-lo."

"De jeito nenhum", eu disse. "As pessoas aqui gostam do meu trabalho, eu acho. Mas quanto à adoração... para ser sincero, ainda não tive o bastante disso para me cansar."

Meu convidado sentou-se novamente. "Quando eu voltar com a notícia de que o encontrei, de que você me recebeu, meus colegas vão exigir que eu repita cada palavra, reencene cada gesto."

"Isso deve ser fácil", eu o consolei. "Não sou muito de gesticular."

“Naturalmente, alguém tão acostumado à reverência do mundo não consegue perceber a importância de cada nuance de voz, cada piscar de olhos. Eles vão devorar tudo! Sim, preciso fazer da minha mente uma câmera.” E então ele pareceu tomado por um pensamento amargo. “Se eu tivesse uma câmera, teria sua permissão para registrar uma ou duas horas típicas do seu dia a dia?”

“Claro que teria”, eu disse com a gentileza de quem não tem nada a perder, “se você tivesse uma câmera.”

“Maravilhoso!”, disse Resnais, levantando-se de um salto. “Deixei do lado de fora da porta”. “Será”, ele se vangloriou, “o registro de uma visita a um santuário.”

Resnais voltou, carregando seu equipamento, e começou a me seguir, filmando cada movimento meu por várias horas — almoçando, atendendo o telefone, desenhando. No final da tarde, pedi desculpas por ele ter tido um dia tão monótono. Mas se era um dia típico que ele queria, eu disse, é isso que ele teve.

Resnais me garantiu que cada rabisco aleatório teria um significado enorme para o culto a Capp e seria de valor inestimável — especialmente naquele momento, quando todos os membros preparavam seus trabalhos sobre minha mente e meu mito para a Primeira Exposição Internacional de Quadrinhos, a ser realizada em Bordighera, na Itália.

"A primeira internacional o quê?", perguntei. E qualquer um teria feito a mesma pergunta.

Resnais explicou: “Centenas de sábios, sociólogos e historiadores sociais de toda a Europa se reunirão em um congresso em Bordighera, na Riviera Italiana, de 20 a 24 de fevereiro, para discutir a flor da arte e da literatura americanas, ou seja, a história em quadrinhos americana. E qual história em quadrinhos seria homenageada como a flor mais bela de todas?...”

Resnais sorriu, e eu adivinhei.

Ele disse que não se aproveitaria da minha hospitalidade para fazer tal pedido naquele momento — mas, se eu cogitasse a ideia de comparecer no evento, minha presença tornaria o congresso um evento histórico. Tão fervorosa era a esperança, disse ele, de que uma certa "honra" (ele nunca foi específico sobre a "honra", mas tive a sensação de que era feita de ouro maciço e de um tamanho razoável) estava sendo preparada para mim. Ele disse mais uma vez algo gentil sobre eu ser um mito imortal e foi embora.

   

Depois de diversas e confusas trocas de mensagens, Al Capp foi para Itália. Além do voo Nova York-Milão, foram mais seis horas de carro de Milão até Bordighera, para enfim chegar ao hotel reservado pela organização. Hotel que Al Capp descreve como uma versão italiana da casa da Família Adams. No balcão do estabelecimento, descobre que, naquele momento, em outro local de Bordighera, estava acontecendo o encerramento do Salone, e vários dos outros convidados já estavam de partida. Por sorte, Al Capp encontra um fotógrafo norte-americano que o leva para o bar do hotel onde só há dois clientes, também norte-americanos, também quadrinistas: Alfred Andriola (autor das tiras Kerry Drake e Charlie Chan) e o roteirista Lee Falk (Fantasma e Mandrake).

Al Capp descreve a cena:

 

Fiquei espantado.

Falk e Andriola não.

"Há quanto tempo você está aqui?", perguntou Lee.

"Menos de uma hora."

"Estamos aqui há dois dias", disse Andriola. Achei ter detectado um tanto de inveja em seu olhar.

"Vocês não vieram juntos?"

"Nenhum de nós sabia que o outro tinha sido convidado", disse Andriola. "Quando Resnais veio a Nova York no verão passado, ele me disse, confidencialmente, que os intelectuais da Europa reverenciavam Kerry Drake, meu mito imortal..."

"Ele também visitou meu santuário", disse Lee.

"Eu meio que tive a impressão de que todo o evento seria construído em torno de mim", disse Andriola, "e eu não queria mencionar isso para nenhum dos outros caras e magoá-los."

"Eu me senti da mesma forma", disse Lee, "e agora que acabou, não consigo deixar de me perguntar como também tive a impressão de que eles iriam me presentear com algum tipo de 'honra'. Eu a via como algo feito de ouro..."

"E de um tamanho razoável?", perguntou Andriola.

"Sim", disse Lee. "Não pequeno."

"O que é preciso lembrar", disse Andriola, "é que inglês não é a língua de Resnais. Devemos tê-lo entendido mal. Mesmo assim, ele é uma pessoa muito agradável."

"Exceto por aquelas coisas maldosas que ele disse sobre Mark Twain", disse Lee.

"Os estrangeiros não percebem como nos ressentimos de qualquer insulto contra Mark Twain", disse Andriola. “Mas, por algum motivo, não fiquei bravo com Resnais.”

“Por algum motivo, eu também não”, disse Lee.