JC, O VAMPIRO – primeiro capítulo
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Leia o primeiro capítulo de JC, o Vampiro, novo romance de Rafa Campos Rocha, que a Veneta publica semanalmente, a partir de hoje, no blog
Texto e ilustração: Rafa Campos Rocha *
De como Yeshua foi assassinado por legionários romanos e, ao mesmo tempo, salvo pelo decurião Pantera
Pantera foi meu pai e meu mentor. Eu, Yeshua, filho de uma prostituta que teve a vila arrasada por mercenários a serviço de Roma, assim o declaro.
Mas é claro que não foi exatamente assim.
Para começar, a vida não era fácil na Galileia do primeiro século do Império Romano. A maior parte da população já vivia o medo e a fome constantes, e a presença dos invasores não mudava em nada a sensação de que, para o pobre, o vale de lágrimas era a Verdade e a Lei.
E minha mãe não era exatamente uma prostituta. As mulheres não conseguiam o luxo de receber pagamentos em dinheiro pelos abusos a que eram submetidas. E não estou falando somente de sexo. Se a vida era dura para os homens da região, a das mulheres era pior que a das cabras.
Éramos um pouco menos que uma vila, e eu seguia vivendo com minha mãe, em nossa modesta oficina de carpintaria. Naquela época, minha progenitora se encontrava casada com um velho decrépito, que emprestava uma fachada de respeitabilidade para um lar de mãe solteira de filho adulto pouco afeito ao trabalho. Maria tolerava José, que pelo menos não a importunava com seu membro murcho havia tantos anos. As vantagens de ser a esposa de um velho eram, além da liberdade sexual, a economia com a comida. José mal conseguia chupar um pão, com sua boca privada de dentes, e o primeiro gole de vinho o fazia dormir sentado, babando no próprio colo.
E eu tocava a minha vida. Já havia passado a idade de ser pai, ou mesmo avô. Quase todas as donzelas, tanto da vila quanto da região, já haviam ouvido a minha Palavra, e agora estava no segundo round das casadas, com uma ou outra incursão entre os rapazes, apesar da sodomia não ser o meu forte. Tive um amor masculino, na minha primeira vida, o doce João. Até que rasguei sua garganta com meus dentes.
Mas me adianto.
O comandante do destacamento romano, Pantera, não havia autorizado aquela incursão dos seus soldados à nossa tribo. Foi o que deduzi quando ele apareceu, sozinho, e massacrou seus legionários. Alguns tentaram revidar, mas o enorme fenício – soube depois que ele não havia nascido em Roma – parecia impenetrável às lanças, flechas e espadas, que quando não resvalavam em sua armadura, mal arranhavam a sua pele, tatuada da cabeça aos pés. Bom, aquilo não era exatamente uma tatuagem, aprendi, assim como a pele não era uma pele. Era mais próxima do couro de um rinoceronte, aspergida em volta de todo o seu corpo por meio da feitiçaria arcana de Ur, muito antes dos egípcios herdarem essa feitiçaria e a transformarem em um ritual inócuo. As tatuagens, por sua vez, eram incrustações feitas com laminas aquecidas na Chama Eterna do Meteoro Original, regadas no sangue dos primeiros caprinos infernais que marcharam sobre a terra e, com o tempo, simplesmente abandonaram o planeta.
Mas eu sempre me adianto. Uma pessoa com a minha idade deveria ser imune à ansiedade.
Bom, estava lá eu, nos meus últimos minutos, quiçá segundos, de vida, com as mãos pregadas em um madeiro e a instantes de ser erguido e ter minhas pernas quebradas pela horda de tarados que invadiu e massacrou minha aldeia. Minha pobre mãe, somente 14 anos mais velha que eu, e cuja beleza foi milagrosamente poupada das agruras do deserto, jazia ao meu lado, com a garganta cortada. Maria ainda tentou negociar o seu corpo pela minha vida, mas o estupro tem muito pouco a ver com sexo, como vocês sabem, e os legionários acharam mais prazeroso seu corpo frio do que vivo.
Mesmo assim, com a vista borrada pelo sangue e enevoada pela dor, vi Pantera matar seus homens, um a um. Alguns assassinatos eram tão velozes que eu – na época – não conseguia captar. Um borrão, a areia se levantando e pum! o primeiro legionário agonizando, empalado pela lança de um companheiro, que jazia sem os braços, a poucos metros dali. Outro borrão de velocidade, e outro legionário chorava, o tronco inútil no chão, segurando as próprias pernas. Tudo acabou em menos de um minuto e, pouco antes de desmaiar, senti o hálito de Pantera na minha face, grunhindo as palavras que nunca vou esquecer.
“Você tem apego à vida, homenzinho. Acho que vou te dar um presente”.
* Rafa Campos Rocha é autor de Lobas
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