As rimas precisam fazer sentido quando a batida começar

Em Hip Hop Genealogia, Ed Piskor resgata a história pouco conhecida de um movimento cultural que mudou a música, a arte e a moda em todo o mundo

 

Por Thiago Borges*

 

A volta às aulas se aproximava quando os irmãos Cindy e Clive Campbell decidiram fazer uma festa para marcar o fim das férias de verão de 1973. O salão doHip Hop genealogia 1: Volume 1 prédio onde moravam, no número 1520 da Avenida Sedgwick, no Bronx, em Nova York, era perfeito pra empreitada. Cindy levou a brincadeira à sério, fazendo convites à mão para distribuir entre amigos e a garotada do bairro. Anotou a data do baile (11 de agosto), o valor do ingresso (25 cents para mulheres, 50 para homens) e o nome da atração musical, um tal de Kool Herc (o próprio Clive). Seria mais uma noite comum de alegria adolescente, não fosse a noite responsável por dar origem a uma revolução.

 

O hip hop talvez não tenha nascido, de fato, naquela festa – afinal, o estilo musical que se consolidaria em torno desse termo já vinha se desenvolvendo há algum tempo. Mas a data serve como marco temporal da validação da cultura negra e latina nos Estados Unidos, país que sempre as tratou como periféricas.

 

A prova maior da força e universalidade desse gênero musical – que também é dança, estética, moda, arte, modo de viver – está em como, décadas depois daquele 11 de agosto de 1973, coube a um desenhista branco, da Pensilvânia (local sem tradição alguma nesse tipo de som), recontar a trajetória do hip hop em quadrinhos.

 

Hip Hop Genealogia, de Ed Piskor, começou no formato de tira online em janeiro de 2012, na revista online Boing Boing. No boca a boca, a HQ ganhou popularidade conforme os capítulos semanais saíam, até ser notada pela editora Fantagraphics, no fim de 2014. A partir dali, conquistou o mundo: entrou nas listas de melhores do ano de veículos de imprensa respeitados, suas edições encadernadas se tornaram best-sellers, ganhou até o Prêmio Eisner, na categoria Melhor Quadrinho Baseado em Fatos Reais, em 2015.

 

E o segredo do sucesso nem é tão secreto assim, pois Hip Hop Genealogia é um gibi formalmente simples: cada página conta um fato, anedota, causo ou lenda urbana sobre os anos de formação do hip hop. As tiras andam em ordem cronológica, citando personagens reais e reproduzindo momentos-chave desse movimento cultural – incluindo, claro, a festa dos irmãos Campbell.

 

O que Piskor almejava, na verdade, era transformar o hip hop em parte essencial da americana – palavra que define algo como o patrimônio cultural dos Estados Unidos. Para isso, ele foi beber dos quadrinhos das décadas de 1940 a 1960 (EC Comics, gibis de romance, o universo Marvel de Stan Lee-Jack Kirby-Steve Ditko). Pegou emprestado a estrutura das páginas, baseada nas variações de um grid clássico de seis quadros; a colorização, que simula o velho processo de impressão em quatro cores; e até o papel-jornal das revistas antigas. Tudo para transmitir uma sensação de tradição, nostalgia, como se a relevância histórica de DJs, MCs, grafiteiros, rappers, b-boys, já fosse algo consolidado há tempos no inconsciente coletivo. 

 

Se seres ficcionais são considerados super-heróis, o que dizer de pessoas reais com habilidades extra-humanas, como a capacidade de rimar em ritmo de metralhadora ou girar o corpo velozmente enquanto se apoia apenas a cabeça no chão?

 

 

Pois, se sempre existiram obras de diversas mídias com o hip hop como assunto principal, a maioria o inseria no contexto da ficção – mesmo o vencedor do Oscar 8 Mile – Rua das Ilusões apela pra isso ao narrar a vida do rapper Eminem. As exceções eram documentários sobre aspectos específicos da cena, como Style Wars, feito no auge da febra pelo grafite, em 1983. Coincidência ou não, a partir de Hip Hop Genealogia a trajetória do gênero como um todo passa a ser lembrada com mais frequência em produções de grande escala. Exemplos incluem a série The Get Down (produzida pela Netflix) e as cinebiografias Straight

 Outta Compton – A História do N.W.A. e Roxanne Roxanne.

 

A influência desse gibi será medida realmente daqui alguns anos. Mas a forma direta como trata de um tema cheio de nomes, datas, locais e acontecimentos está aí para ser usada desde já. Apesar de ter várias outras HQs na carreira, esse foi o trabalho da vida de Piskor – uma vida que nos deixou cedo demais.

 

 

Thiago Borges é jornalista, escritor do blog O Quadro e o Risco e coapresentador do podcast Krazy Kazt.

 

 

 

 

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