v-de-veneta

A 2ª temporada do V de Veneta está disponível no Youtube. Inscreva-se no nosso canal!

Endereço: Rua Araújo, 124, 1º Andar, São Paulo          Tel.: +55 (11) 3211-1233          Horário: Seg. à Sex., das 9h às 19h.

Hisashi Sakaguchi: o tesouro secreto dos mangás

Siga-nos

Rogério de Campos, editor-chefe da Veneta, fala sobre a dimensão do trabalho do mangaká Hisashi Sakaguchi, autor de Ikkyu

Por Rogério de Campos

“Seu nome é quase desconhecido entre nós e, no entanto, foi um dos maiores mangakás de sua geração. Foi um dos colaboradores mais próximos de Osamu Tezuka, e Naoki Urasawa o considera sua principal influência”. Assim começa o texto da Les Carriers de la Bande Dessinée a respeito de Hisashi Sakaguchi. O texto se chama “O tesouro secreto dos mangás”.

Tezuka se dizia até surpreso com a qualidade do trabalho de Sakaguchi:

“Como pode alguém tão robusto produzir uma obra tão delicada, triste e terna? Existem muitos mangakás querendo ser poetas, mas Sakaguchi é um verdadeiro poeta. A poesia, as mensagens e os sentimentos que transbordam de suas obras são de primeira linha e autênticas”.

Urasawa, que, para muitos, revolucionou os mangás adultos com gibis como Monster e 20 Century Boys, diz que, na verdade, quem fez isso foi o Sakaguchi, que, em sua opinião, é a ponte entre Osamu Tezuka e Katsuhiro Otomo. Um texto de Urasawa publicado em 2002 tem o título “Meu herói, Hisashi Sakaguchi”. Nele, Urasawa coloca Sakaguchi na lista de seus heróis favoritos, que inclui não apenas quadrinistas como Tezuka, Otomo, Moebius e Hergé, mas também Bob Dylan e Beatles.

Urasawa conta que já estava trocando os mangás por uma banda de rock quando descobriu os quadrinhos de Sakaguchi:

“Fiquei chocado. Como um artista de mangá tão grande permaneceu desconhecido por tanto tempo? Suas linhas eram suaves e completamente desprovidas de elementos supérfluos. Era um mundo vertiginoso de sombras e luzes, com o farfalhar dos ventos, do mar, da chuva e das árvores. Uma sensação quente no ar. E os eram personagens muito bons. Tudo bom demais! Imediatamente pensei que aquele era o mangá que sempre quis ver, o mangá que sempre quis desenhar (…). Meu sonho de criar uma obra como a de Sakaguchi ainda está longe de ser realizado. Resta apenas manter em mente que tenho que desenhar mangá de uma forma que nunca desobedeça às muitas coisas que as obras de Sakaguchi me ensinaram”.

Pode-se dizer que Sakaguchi foi o mangaka dos mangakas. Aquele que os mestres admiram. Veja, por exemplo, os adjetivos que Yoshikazu Yasuhiko – veterano desenhista responsável pela concepção visual do Gundam – dedica a Sakaguchi: “extraordinária capacidade de desenho”, “a força avassaladora de seu poder expressivo”, “deslumbrante”. Ou o que diz o jovem Makoto Yukimura, autor de Planetes e Vinland Saga: “A verdade é que, desde que li Ikkyu pela primeira vez, sempre quis criar um mangá como o de Hisashi Sakaguchi. Tanto que até tentei tomar cuidado para não deixar meus desenhos e roteiros muito parecidos com os de Sakaguchi. Mesmo assim… são tantas as semelhanças! Preciso dizer que não é por falta de esforço da minha parte. Não é minha culpa! Na verdade, isso nos diz quão forte é a influência do trabalho de Sakaguchi”.

Sakaguchi morreu jovem, aos 49 anos, no dia em que entregou o último desenho de Ikkyu para o editor. Essa poderia ser uma explicação para o fato de não ser tão conhecido.

Outra explicação poderia ser o fato de ele, nas duas primeiras décadas como desenhista profissional, ter se dedicado a trabalhar quase sempre anônimo em animes de outros autores. Foi o principal desenhista de diversos clássicos animes de Osamu Tezuka, por exemplo. Seus primeiros quadrinhos, histórias curtas, costumava publicar em pequenas revistas de vanguarda.

Trecho de Ikkyu, de Hishashi Sakaguchi.

Kenzo Suzuki, que, além de traduzir as obras de Sakaguchi para o francês, é um dos maiores especialistas no autor e tem sido meu guia pelo mundo Sakaguchi, diz que quando ele entrava nos quadrinhos era “num sentido muito artístico e ele não usava assistentes”. Isso teria diminuído sua produtividade e dificultado sua integração ao ritmo das grandes editoras.

Sakaguchi começou a trabalhar na equipe de Osamu Tezuka em 1963. Tinha então 17 anos. Seu talento logo foi reconhecido. Passou a ser um dos principais desenhistas da equipe e trabalhou em séries como Astro Boy, Kimba o Leão Branco e A Princesa e o Cavaleiro. Deixou a equipe de Tezuka em 1967 e dali em diante passou a trabalhar como freelancer para diversos estúdios e agências de publicidade. Chegou, nos anos 1960, a fazer alguns quadrinhos para gibis adolescentes, assinando como Hammer Sakaguchi. No ano de 1970, desenhou dois números do mangá Urufu Gai (escrito por Kazumasa Hirai), fez uma quadrinização de As Aventuras de Tom Sawyer de encomenda para a Kodansha, e um mangá em parceria com Osamu Tezuka, a quadrinização de Cleópatra, um desenho animado erótico de Tezuka.

Trecho de Ikkyu, de Hisashi Sakaguchi.

Ainda assim, sua verdadeira estreia como mangaka aconteceu em 1969, com uma história curta na COM, a revista de quadrinhos de vanguarda que Tezuka criou para concorrer com a Garo.

Sakaguchi fez outras diversas histórias curtas, experimentais, para a revista. Em paralelo, continuava como freelancer para estúdios de anime. Já nessa época, diversos colegas desenhistas e editores o definiam com a palavra “gênio”. Ainda assim, nem sempre Sakaguchi tinha trabalho na área do desenho. Às vezes tinha que arrumar bicos, como, por exemplo, o de entregador de pão.

Em 1978, Osamu Tezuka fez um acordo com a Nippon TV (mais conhecida como NTV) para a produção de um ambicioso longa de animação: Hyakumannen chikyū no tabi: Bander Book (A viagem de um milhão de anos: livro de Bander), um marco na história dos animes. O problema é que Tezuka estava com muitos outros trabalhos em andamento. Chamou então uma pessoa de absoluta confiança para tocar o projeto: Sakaguchi. Este está creditado como diretor do filme. Mas fez bem mais do que apenas dirigir: chefiou toda a equipe, criou o design dos personagens e cenários, e até mesmo parte dos storyboards, tarefa que Tezuka sempre fazia questão de reservar para si próprio. O resultado foi tão bom que Tezuka sentiu confiança para encarregar Sakaguchi da direção e storyboards de mais um longa de animação: Fumoon (1980). Para Takayuki Matsutani, que trabalhou com Tezuka por décadas e é o presidente da Tezuka Productions, os dois artistas eram muito parecidos: ambos perfeccionistas, artesões completos e focados mais que tudo na qualidade da obra. E eles se respeitavam por isso.

Sakaguchi poderia ter garantido um lugar entre os principais nomes da animação japonesa nos anos 1980. Era o mais sério candidato a herdeiro de Tezuka na área. Mas estava cada vez mais interessado em mangás. Era um espaço no qual podia realizar trabalhos mais pessoais e experimentar mais.

“Quero transmitir aos meus leitores o que não pode ser totalmente expresso em palavras. Para isso quero sempre tentar novas coisas.”

Por isso, trabalhava sozinho. Por isso fazia histórias curtas. Mas em 1983 lançou Ishi no Hana (Flores de Pedra), um épico de 1.400 páginas a respeito da guerrilha antinazista na Iugoslávia. Em 1989, experimentou a ficção científica com outra grande saga: Version.

Trecho de Ikkyu, de Hisashi Sakaguchi.

E em 1993 começou a publicar Ikkyu, sua biografia em quadrinhos de uma das mais fascinantes personalidades da história do zen-budismo e da história do Japão. Ikkyu (1394-1481), santo e herege ao mesmo tempo, riu da pomposidade do burocratismo da religião organizada. Um santo que gostava de sexo e bebidas alcoólicas. Ao mesmo tempo, alguém que foi decisivo no desenvolvimento de tantas tradições culturais japonesas, como a cerimônia do chá, o arranjo floral e a caligrafia. Tornou-se uma das figuras históricas mais populares do Japão, personagem até de livros infantis e desenhos animados, que descrevem a esperteza que Ikkyu demonstrou desde a infância.

Ikkyu foi publicado em capítulos, na Afternoon, a revista de quadrinhos adultos da Kodansha. Ou seja, uma revista mainstream, que ao lado de Ikkyu publicava naquela época séries de sucesso como Parasyte (que, diz o boato, Hitoshi Iwaaki criou inspirado em outra HQ de Sakaguchi) e Blade (de Hiroaki Samura), Oh My Goddess! (de Kosuke Fujishima) e Gunsmith Cats (de Kenichi Sonoda). Mas só distraídos diriam que Sakaguchi se adaptou. Ele continuava produzindo no seu ritmo – e sozinho. Mas trabalhava a história em camadas. Assim Ikkyu pode ser lido como um detalhista quadrinho histórico que tem força dramática, ação, humor e um desenho esplendoroso. Uma leitura emocionante que flui com facilidade. Mas quando olhamos melhor os detalhes, quando relemos essa obra, vamos descobrindo novos significados. E percebemos que o poeta Sakaguchi vai além: faz a apresentação do zen-budismo em forma de quadrinhos, cria poesias silenciosas e insere nas páginas de Ikkyu outras coisas que ainda estão por ser descobertas.

Em 1996, meses depois da morte de Sakaguchi, Ikkyu ganhou o grande prêmio de excelência da Associação dos Desenhistas Japoneses.

Nesse mesmo ano, a obra foi publicada na França, com prefácio de Moebius. Foi muito elogiado pela crítica europeia, mas não foi um grande sucesso comercial. Talvez porque a qualidade das imagens naquela edição estivesse aquém do traço de Sakaguchi, talvez porque o formato não ajudasse, talvez por problemas na tradução. Talvez porque, simplesmente, fosse muito cedo.

Agora, finalmente, o Ocidente está redescobrindo esse mangaká. A Les Carriers de la Bande Dessinée fala em “renascimento de Sakaguchi” na Europa e no Japão. Suas obras estão sendo redigitalizadas e voltando a ser publicadas, e Ishi no Hana foi premiada no último Festival de Angoulême. Não tenho dúvida de que em breve veremos Sakaguchi ser amplamente reconhecido como um dos melhores mangakas de todos os tempos.

Trecho de Ikkyu, de Hisashi Sakaguchi.

No momento em que escrevo este texto, ainda estamos trabalhando na edição do livro. Será uma edição em quatro volumes, com mais de trezentas páginas cada um. A tradução é da Drik Sada, já bem conhecida dos leitores brasileiros de mangás. E o projeto gráfico, da Casa Rex, que cuidou dos outros mangás da Veneta: Ayako (Osamu Tezuka), Vida à Deriva (Yoshihiro Tatsumi) , O Homem Sem Talento (Yoshiharu Tsuge) e Kanikosen (Gō Fujio e Takiji Kobayashi). A edição terá um posfácio de Kenzo Suzuki e muitas notas, algumas delas feitas pelo próprio Sakaguchi e outras especiais desta edição brasileira. Há mais de 20 anos tento trazer a obra de Sakaguchi para o Brasil. Eu e a equipe da Veneta queremos garantir que nossa edição seja digna de um dos mais importantes mangás já publicados em nosso país.

Títulos relacionados:

Você também vai gostar

por Ana Luiza Koehler* Porto Alegre é a conhecida capital do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil....
    Ben Passmore é uma das novas vozes do anarquismo negro norte-americano. Para marcar o lançamento de Esporte é...
João Pinheiro fala sobre o processo de criação da HQ Depois que o Brasil Acabou em entrevista à Veneta Por Seham Furlan   Em...
por Seham Furlan Quando criança, Juliana Frank gostava de fingir que trabalhava com o pai, até mesmo frequentava algumas reuniões...