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Um Espírito Livre, por Kenzo Suzuki

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Este livro foi publicado originalmente em capítulos na revista Afternoon, de 1993 a 1995. Takayuki Matsutani, atual presidente da Tezuka Productions, conta que Sakaguchi chegou ao seu escritório com 300 páginas já finalizadas e perguntou se poderia ajudá-lo a encontrar um editor que publicasse aquilo. O impulso interno de Sakaguchi foi forte o suficiente para que ele fizesse as 300 páginas sem nenhuma certeza de publicação! Esse episódio, muito típico de Sakaguchi, deve ser lembrado pelo leitor desta obra. Quando Matsutani viu o material, imediatamente reconheceu sua importância e apresentou Sakaguchi à Kodansha, editora da Afternoon.

Ikkyu Sōjun (1394-1481) foi um monge zen da escola Daitokuji da Escola Rinzai. Embora existam vários relatos tradicionais sobre as origens e o nome de sua mãe, e eles sejam desconhecidos em termos precisos, é quase certo que Ikkyu era filho ilegítimo do imperador Go-Komatsu, e seu túmulo é agora conservado pela Agência da Casa Imperial1.

Apesar de ser um dos monges budistas mais famosos do Japão, a imagem que a maioria dos japoneses tem de Ikkyu é de um garotinho muito esperto. É uma imagem muito influenciada pelo anime Ikkyu-san, da Toei2. O anime durou sete anos, de 1975 a 1982, com um total de 296 episódios. O programa foi muito popular, com audiência de 27% na região de Kantō e 41% na região de Kansai4. O anime contava, com um toque cômico, as aventuras do menino Ikkyu no templo Ankokuji. O tema constante era a esperteza de Ikkyu para resolver os problemas criados por adultos. Vários dos episódios deste livro são também apresentados no anime. Na verdade, esse tipo de história de Ikkyu é amplamente conhecido desde o início do século 20 através de livros infantis ilustrados. Algumas dessas histórias a respeito da esperteza de Ikkyu remontam a ainda mais longe na história. As aventuras do pequeno e engenhoso Ikkyu renderam diversas produções para a televisão e ele ainda hoje pode ser visto em comerciais. Podemos até dizer que o espertinho Ikkyu se cristalizou em um “personagem”, quase como um Mickey Mouse ou Astro Boy.

Porém esse sujeito espertinho tem pouco a ver com o retrato que o verdadeiro Ikkyu fez de si próprio. Ele ousou se autodefinir como um monge libertino que violava os preceitos budistas. Usou para si os termos como “kyōunshi” e “mukei”. Este último significa desfrutar da alegria da carne e do espírito enquanto sonha. E kyōunshi significa viver sua vida ao modo fūkyō, de acordo com sua fantasia, como uma nuvem sendo levada pelos ventos selvagens. A palavra fūkyō significa, em suma, agir sem considerar os preceitos, o senso comum, os costumes ou a autoridade, mas com uma firme convicção escondida atrás de palavras e ações malucas. Neste primeiro volume, há uma cena em que Shūken olha para o céu e vê as nuvens fluindo, como se olhasse para seu futuro. Além disso, a abertura deste volume começa com uma cena em que Ikkyu sai bêbado de um bordel em um bairro miserável. Na rua, as pessoas o reconhecem e chamam seu nome amistosamente. Mas dois monges vêm repreender Ikkyu, que responde mostrando a língua. Esse gesto é chamado de akkanbe em japonês. É importante lembrar que o título original do mangá é “Akkanbe Ikkyu”.

Esse gesto humorístico expressa uma rejeição, mas é ao mesmo tempo um sinal de uma emoção positiva, como a compaixão e o carinho, e o autor retrata-o aqui e ali ao longo da obra, especialmente no início e no final, como uma representação simbólica da filosofia de vida de Ikkyu. Esse gesto de ambivalência deve ter sido para Sakaguchi uma expressão humorística do pensamento fūkyō, e através desse gesto ambivalente encontra um eixo para compreender a complexidade aparentemente contraditória da vida de Ikkyu. Há um poema em chinês escrito por Ikkyu ao qual Sakaguchi pode ter se referido ao retratar essa cena. (Como a poesia chinesa está aberta a várias interpretações, a notação no idioma original é mantida aqui. Os poemas chineses nesta forma são chamados de “Shichigon Zekku”, consistindo em 28 caracteres de 4 versos, e quase todos os poemas chineses escritos por Ikkyu são nesse estilo.)

風狂狂客狂風起
来往酒肆淫坊中
具現衲僧誰一拶
南画北画東西画

Sou louco, alguém difícil e um incômodo a qualquer hora e em qualquer lugar. Posso ir aonde quiser, seja um bordel ou um bar. O que você, um monge cheio de autoridade, pode dizer a alguém assim? Vá a qualquer lugar, leste, oeste, norte, sul, eu vou te refutar!

Ikkyu tinha, portanto, uma atitude exatamente oposta à da hipocrisia. Ele deliberadamente quebrou os preceitos, gostava de sexo e de álcool, fez valer seus desejos e zombou dos grandes monges e autoridades com suas patuscadas, mas foi assim que Ikkyu se meteu no inferno da vida humana, aproveitando esse cotidiano com os pobres e visando ao zen puro, mesmo que ninguém o entendesse, o que nos permite perceber um forte sentimento de orgulho nesse poema. As atividades amalucadas de Ikkyu serão descritas com mais detalhes nos próximos volumes desta obra. Seja como for, é essa a imagem que Ikkyu apresenta de si mesmo na sua obra principal, Kyōunshū, e a que fez dele o alvo das atenções do povo de Kyoto e Sakai como um monge excêntrico,
mas essencial, que encarna o mais puro pensamento zen. As atividades e as ideias de Ikkyu foram registradas por poetas famosos com admiração, mas também, às vezes, como curiosidade ou de uma forma crítica por diversos contemporâneos, entre eles aristocratas e monges de facções rivais. Naqueles tempos de guerra e agitação social, Ikkyu não era um político nem um militar, mas um malandro feito herói cultural, um poeta fūkyō. No final da sua vida, grandes personalidades culturais da época foram estudar o zen com Ikkyu e interagir com ele no seu eremitério, entre eles Iio Sōgi (1421–1502), Saiokuken Sōcho (1448–1532), Yamazaki Sōkan (1465–1554), Murata Shukō (o criador da cerimônia do chá6, 1423–1502), o ator e dramaturgo Konparu Zenchiku (pioneiro do teatro Nô, 1405–1468) e o pintor Hyobu Bokkei (?–1473).

Como visto acima, o fūkyō de Ikkyu se espalhou para o grande público através de rumores, boatos e tradições orais ou escritas, mesmo fragmentárias, o que criou imagens de Ikkyu. Ou seja, não foram seus próprios poemas que lançaram sua imagem. Seu livro Kyōunshū é acima de tudo uma coleção de poemas escritos em chinês, na maior parte muito difíceis de serem lidos. Na verdade, existem apenas duas obras atribuídas a Ikkyu de que podemos ter certeza serem realmente dele. A principal é Kyōunshū, a outra é Jikaishū, uma coleção de cerca de 200 poemas (também escritos em chinês) irônicos e críticos que ele escreveu para denunciar a direção de Daitokuji, particularmente Yōsō Sōi (1376–1458), um colega mais velho da escola, na perspectiva
de seu pensamento zen. É um documento paródico e um tanto político com vestígios de edições feita por seus seguidores, assim, não é considerado muito útil para captar o pensamento de Ikkyu.

Além disso, o manuscrito completo de Jikaishū só foi descoberto em meados do século XX e teve consideravelmente menos impacto histórico na tradição popularizada e na imagem de Ikkyu7. O Kyōunshū contém, além das doutrinas zen, também pontos de vista críticos sobre vários eventos e assuntos públicos, bem como descrições e confissões vívidas ou chocantes sobre sexualidade, principalmente a sodomia, que são essenciais para conhecermos o pensamento de Ikkyu em suas próprias palavras. Apesar disso, sua forma poética é estritamente tradicional e sua complexidade literária o torna difícil de decifrar.

Assim, devido à difícil complexidade desses poemas, as histórias e o pensamento de Ikkyu acabaram por ser transmitidos sem o formato poético, na forma de histórias cômicas. Isso continuou acontecendo nas épocas posteriores e em várias mídias. Os poemas de Ikkyu foram reinterpretados e contribuíram indiretamente para divulgar a imagem que ele tinha de si mesmo.

Alguns documentos históricos contam a biografia de Ikkyu. São os Anais do Monge Ikkyu, escritos por seu discípulo Bokuzai (?–1492) logo após a morte de Ikkyu, que constituem o mais importante documento biográfico a respeito dele.

No entanto, esses “Anais” têm apenas 8.000 caracteres em kanji (ideograma japonês). Além disso, é um documento da seita a que Bokuzai pertencia, pelo que pode ser tendencioso. Muitos episódios que não se queria ver expostos podem ter sido omitidos. Diversos episódios de fūkyō encontrados nas tradições e na própria poesia de Ikkyu não são apresentados nesse documento. Enfim, muitas vezes há discrepâncias e relatos conflitantes entre esse registro histórico de Ikkyu, a autoimagem retratada em Kyōunshū e o que dizem as tradições. Pode-se então perguntar se a vida de Ikkyu está realmente retratada nesse único documento. Mas pode-se também suspeitar de que o próprio Ikkyu pode ter exagerado seu papel como o enlouquecido vento em Kyōunshū. Até porque é uma coleção de poemas sobre si mesmo e, como gênero, é uma autoficção.

A poesia, as tradições e os documentos históricos misturam-se, e a fronteira entre a ficção e a realidade torna-se confusa. Se o documento biográfico e a poesia chinesa do mundo zen estão tão distantes do mundo das pessoas comuns, o que faz com que as anedotas de Ikkyu e a sua poesia continuem a atrair tanta atenção do público em geral?

Em primeiro lugar, o Chanoyu (cerimônia do chá), cujo desenvolvimento teve a participação decisiva de Ikkyu. Além disso, quando, seguindo o exemplo de seus mestres Ken’ō e Daitō Kokushi, Ikkyu deixou os grandes templos de Gozan para viver com os habitantes da cidade, costumava presentear as pessoas com pequenos escritos ou pequenas pinturas (na verdade, Ikkyu deixou mais textos de poucas palavras e poemas curtos do que livros). Após sua morte, a escrita de Ikkyu tornou-se mais e mais apreciada como arte caligráfica. Sua escrita é respeitada como manifestação do grande monge fūkyō que, apesar da sua pobreza, viveu de acordo com os seus ideais zen, sem ceder a nada.

No mundo da cerimônia do chá, o termo bokuseki associa a caligrafia com o chá. Murata Jukō (ou Shukō), um dos discípulos de Ikkyu e fundador do atual estilo de cerimônia do chá, Wabicha, foi pioneiro no uso da caligrafia para decorar a sala da cerimônia do chá. Além disso, o primeiro bokuseki que Jukō mostrou teria sido dado a ele diretamente por Ikkyu. O nascimento do hábito da decoração caligráfica está assim já associado a Ikkyu. Sen no Rikyu (1522–1591), mestre do wabicha do daimyo Nobunaga Oda, assim como seus discípulos Kobori Enshu (1579–1647) e Kanamori Sowa (1584–1657), exibia a caligrafia de Ikkyu em suas cerimônias de chá, frequentadas por diversas das maiores autoridades do Japão. Pode-se inferir que, cem anos após sua morte, Ikkyu era muito admirado e popular nos salões das classes dominantes da época.

Mais tarde, durante o Período Genroku (1688–1704), um período de paz contínua e de desenvolvimento econômico, à medida que a classe média burguesa crescia, o número de pessoas interessadas e dispostas a praticar chanoyu aumentou ainda mais. Diz-se que o entusiasmo pela cerimônia do chá despertou o interesse pelo zen-budismo e por Ikkyu. Nanpōroku, o clássico tratado sobre a cerimónia do chá escrito em 1690, sublinha a importância do zen na prática do chanoyu. Autor de Nanpōroku (1690), Nanbō Sōkei afirmava ser discípulo do filho de Ikkyu, Giō Shotei (datas de nascimento e morte desconhecidas). Mesmo que essa afirmação possa ser falsa (na verdade, até mesmo a própria existência de Nanbō Sōkei é questionada), ela por si só demonstra como o prestígio de Ikkyu já estava consolidado na época. Em resposta a esse crescente interesse, surgiu uma antologia que reunia diversas anedotas sobre Ikkyu. O livro chamado Ikkyu banashi (Fábulas de Ikkyu) foi publicado em 1668 e tornou-se um dos livros mais populares do Período Edo. Teve várias edições e até imitações.

Com linguagem clara e simples, escrita por alguém que certamente entendia bem do assunto, Ikkyu banashi explica o zen-budismo através de 48 contos, vinte deles protagonizados por Ikkyu. Esse trabalho tornou-se um modelo, e vários livros que tratam de Ikkyu foram publicados nesse estilo desde então.

Essas coleções de episódios sobre Ikkyu no Período Edo conseguem transmitir ao leitor o humor e a inteligência de fūkyō, mas na verdade há poucos episódios da infância de Ikkyu. Por exemplo, das 48 histórias de Ikkyu banashi, apenas duas referem-se à infância de Ikkyu: aquela em que uma placa proíbe a entrada no templo de pessoas usando peles de animais e aquela em que Ikkyu alega que sua boca é como um posto de fronteira. No entanto, essas anedotas são provavelmente fictícias.

A imagem moderna de Ikkyu como Tonchi kozō (garoto inteligente) provavelmente começou a se desenvolver no Período Edo, quando contos populares foram gradualmente adaptados para apresentar Ikkyu. Como outro exemplo, a história de fingir suicídio depois de beber “veneno” (na verdade, um doce xaroposo) para se desculpar com seu mestre (p. 98) é um conto bem conhecido que apareceu pela primeira vez em uma saga budista do século 12.

Detalhes da infância descritos neste primeiro volume, como o nome de infância de Sengikumaru, o nome e as origens da mãe de Ikkyu, o nome de sua babá Tamae, os nomes de seus colegas nos templos e o episódio da captura de um tigre retratado em uma tela durante uma audiência com Yoshimitsu, foram inventados pelos kōdanshi (contadores de histórias) no final do século 19. O antigo estilo de contar histórias do período Edo foi adaptado pelos kōdanshi, que absorveram a influência de romances importados do Ocidente. Durante esse processo, as histórias de Ikkyu também foram refeitas em um estilo moderno. Ninjas como Sarutobi Sasuke e espadachins como Miyamoto Musashi seguiram o mesmo caminho histórico de Ikkyu, e suas histórias foram
adaptadas ao modo narrativo moderno.

E foi nesse processo geral de modernização que essas histórias Ikkyu foram transformadas em biografias e livros infantis ilustrados, e depois em desenhos animados. Desse ponto de vista, a reconstituição que Sakaguchi faz dos dias de formação de Ikkyu neste volume é muito especial. Ele apresenta a imagem tradicional de Ikkyu como um monge fūkyō e a imagem de Ikkyu
como um espertinho, acrescentando suas próprias palavras de poesia, e retrata de forma realista os detalhes do cotidiano de um templo zen, com base provavelmente no livro Ikkyu, do escritor Tsutomu Minakami, que passou a infância em um templo9. Conseguir compor esses elementos heterogêneos é uma tarefa difícil, mas, por meio do contraste entre esses detalhes, Sakaguchi consegue tornar convincente, por exemplo, a tão simbólica cena que expressa a hesitação de Ikkyu como tentação de uma aranha e a profundidade da angústia que o leva cada vez mais à loucura de fūkyō. Sakaguchi é um mestre na transformação de fábulas pré-modernas em contos modernos.

A enorme lista de 120 referências no final do último volume desta obra mostra que ela inclui não apenas material histórico sobre Ikkyu, como os anais, mas também suas obras de poesia, literatura relacionada e livros populares antigos, como Ikkyu banashi. Sakaguchi desenvolve sua narrativa com a compreensão dos múltiplos e simbólicos significados da obra de Ikkyu.

Ao desenvolver sua imagem de Ikkyu, Sakaguchi aparentemente não quis fazer uma distinção clara entre fato histórico e ficção. Por que, então, Sakaguchi tentou completar todas as diferentes imagens de Ikkyu de forma coesa em uma história? Para responder a essa pergunta, sugiro que leiamos este livro enquanto consideramos a resposta à seguinte questão: Se perguntássemos a Ikkyu qual é o verdadeiro Ikkyu, o verdadeiro você, que poema Ikkyu faria para nos responder?

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