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São Paulo, uma praça de guerra

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Por Silvana Jeha*

 

Silvana Jeha conta a batalha para assistir aos Racionais

Neste último mês, o samba e a cultura hip-hop paulistana foram seguidamente atacados por políticos de extrema direita e por instituições policiais.

Mais precisamente foi o enredo da escola de samba Vai-Vai, que celebra os 40 anos da cultura hip-hop no Brasil, que causou o frenesi. Na ala “Sobrevivendo no inferno”, título do álbum de maior sucesso do Racionais Mc’s, policiais da Rota são representados com chifres e asas de diabos, os guardiões do infernal cotidiano da população periférica destituída de direitos e agredida pelas forças policiais descritos pelo grupo em diversas canções.

O sindicato de delegados do estado de São Paulo escreveu uma nota de repúdio onde se lê que a Vai-vai:

“tratou com escárnio a figura de agentes da lei. Com direito a chifres e outros itens que remetiam à figura de um demônio, as alegorias utilizadas na ala “Sobrevivendo no Inferno”, demonizaram a Polícia – algo que causa extrema indignação.

Ao adotar tal enredo, a escola de samba, em nome do que chama de “arte” e de liberdade de expressão, afronta as forças de segurança pública, desrespeita e trata, de forma vil e covarde, profissionais abnegados que se dedicam, dia e noite, à proteção da sociedade e ao combate ao crime, muitas vezes, sob condições precárias e adversas, ao custo de suas próprias vidas e famílias.”

Os delegados têm, obviamente, o direito de defender  sua instituição e de se chatearem por serem retratados como demônios. No entanto, as estatísticas, vídeos  e relatos documentados e orais demonstram amplamente o inferno de violência física e psicológica que negros e pobres sofrem nas mãos da polícia. Violência que inclui assassinatos sumários e não em combate. Um pouco dessa realidade aparece no noticiário ainda que de forma amenizada. Mas essa realidade está descrita com bastante veemência nas letras de rap, e desde que o samba é samba. Podemos escutar em duas faixas do Sobrevivendo no inferno. Na introdução de “Capítulo 4, Versículo 3” (nome do enredo da Vai-vai): “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial/A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras”.  Ou  em “Qual mentira eu vou acreditar”: “Eu me formei suspeito profissional Bacharel, pós-graduado em tomar geral”. Por estas canções e muitas outras mais os Racionais Mc’s foram nomeados em 2023, Doutores Honoris Causa pela Unicamp. No parecer da comissão podemos ler:

São intelectuais públicos[…], os quatro, enunciam poéticas, projetos estéticos e projetos políticos desde 1988 a respeito do Brasil. Dialogam e pugilam com o pensamento social brasileiro; confrontam o racismo e as violências sociais que nos constituem enquanto sociedade, incitando a atitudes antirracistas e solidárias de negros e não-negros, periféricos e não-periféricos, visando mudanças sociais profundas.

Um detalhe ofensivo para nós, paulistas em geral, foi a nota do Sindicato de Delegados terminar com a seguinte frase: “Não estamos falando, afinal, apenas dos policiais, sejam civis ou militares, mas, sobretudo, de uma instituição de Estado que representa e está a serviço de toda a sociedade bandeirante”.  Chamar a todos nós de sociedade bandeirante é uma afronta, simplesmente porque os bandeirantes desbravaram as terras do que se chamaria Brasil justamente com a mesma violência que o braço armado do Estado ainda o faz, com violência, agressão e genocídio. Os bandeirantes além de continuar a invasão do vasto território que habitamos caçavam indígenas para escraviza-los. A sociedade não é bandeirante, mas o Estado segue sendo.

Continuando a ladainha de nossa eterna colonialidade, um deputado federal e um deputado estadual, ambos do PL dirigiram ofícios ao prefeito e ao governador de São Paulo sugerindo que a Vai-vai não recebesse mais recursos públicos. O governador do Estado afirmou que daria zero pra a ala “Sobrevivendo no inferno”, caso fosse do júri dos Desfiles de Escola de Samba. Ele defendeu a instituição bicentenária da polícia afirmando que são profissionais excelentes “corajosos, heróis” e que esse “tipo de deboche é ruim, é de mal gosto”.  E finalmente um outro deputado federal do PL protocolou uma denúncia contra o presidente do Vai-vai por apologia ao crime.

Como afirmou o Governador, a polícia de SP  tem quase 200 anos. Então vamos continuar falando de história.

No tempo que se criou a polícia em São Paulo –  que atendeu por vários nomes até se tornar militar –  havia escravidão. Então a polícia já era quem tratava das fugas de escravizados e também os trancava na Casa de Correção . Quem passou, por exemplo, por ali foi Tiodora Dias, mulher nascida no Reino do Congo e vinda como escravizada para o Brasil. Ela foi suspeita de ter ajudado outro escravizado, o Claro, a roubar seu senhor, só porque ela o conhecia. Marcelo D’Salete contou sua história no excelente Mukanda Tiodora.

Até os anos 1970, as “leis da vadiagem” foram as maiores responsáveis pela detenção de pobres. Depois dessa década foram as leis de combate ao tráfico de drogas que mais levaram gente os presídios brasileiros. São quase 1 milhão de pessoas, a maioria de pretos e pardos, sendo os presídios uma extensão da periferia. A execução coletiva de 111 presas ocorrida no Carandiru em 1992 é o tema do “Diário de um detento”, canção do álbum Sobrevivendo no inferno.

*

Semanas antes do Carnaval, na noite do dia 27 de janeiro de 2024, o Vai-vai, promoveu um show de rap e samba no Anhangabaú para comemorar seus 94 anos. Grandes nomes do rap brasileiro estava programada pra se apresentar, entre eles a maior estrela, os Racionais.

Eu e meu namorado, ambos brancos, moradores de bairros centrais majoritariamente brancos de São Paulo nos dirigimos animados para o Anhangabaú. Chegamos lá e nos deparamos com filas enormes de maioria negra e muito provavelmente periférica. Seguimos na fila principal por 40 minutos até ela ser dispersada. A justificativa foi que a Polícia Militar havia proibido mais gente de entrar porque já estava lotado. Nos dirigimos a outra entrada e seguimos mais algum tempo na fila, até recebermos a notícia dos seguranças do evento que ali também não poderíamos entrar. Ficamos todos revoltados, afinal pagamos em média 100 reais e, como diz o rap, “chegou fim-de-semana todos querem diversão”. Então um grupo resolveu invadir. E nós fomos atrás. Invadimos com a convicção de que era um direito. Enquanto corríamos nos dirigindo para outra catraca, um grupo de policiais militares veio em nossa direção para nos impedir. Como nós estávamos mais a frente conseguimos escapar, mas outras pessoas foram agredidas. Entramos no show que estava cheio, mas não lotado. Era possível circular e não havia nenhum tipo de confusão promovida pela plateia.  No fundão, onde ficamos, o som estava péssimo e depois de 10 minutos simplesmente sumiu. Demorou para voltar. Mesmo assim, durante todo o tempo a plateia estava de boa assistindo vidrada, cantando junto e se identificando com vários hinos desse grupo ídolo da periferia e de alguns playboys como eu.

Depois que os Racionais deixaram o palco, o show foi interrompido. As luzes foram apagadas e todo mundo teve de deixar o lugar. No dia seguinte a Vai-Vai fez a seguinte nota de esclarecimento: “pouco antes do show dos Racionais houve uma invasão das catracas e os seguranças do evento não conseguiram conter. A polícia interviu e determinou que, por conta disso, o restante dos shows seriam cancelados”.

Há muitos atores nessa história, a Vai-vai, a produtora que geriu o evento, a polícia, a prefeitura, o público, etc, não pude averiguar a responsabilidade efetiva de cada um. O valor dos ingressos foram devolvidos ao menos, mas os prejuízos morais da maioria das pessoas que estavam lá não cessam nunca. Por exemplo, muita gente nas redes sociais reclamou que naquela altura o metrô estava fechado e que eles tiveram de ficar pelo centro até ele voltar a funcionar

A soma dos dois eventos deixa claro que a perseguição aos negros e pobres, suas culturas e artes segue vicejante. Como disse o sociólogo Mario Medeiros da Silva, São Paulo [o “estado bandeirante”] não perdoa negros insubordinados.

Aos 94 anos, a Vai-vai, que foi tirada de seu barracão no Bixiga pra dar lugar ao metrô, segue firme e lutando como quilombo que é, pra não ser aniquilada. No filme Ori, o pai de santo Wndembeoacy diz, durante o desfile da Escola de 1981: “Vai-vai é um quilombo, a gente foge pra se esconder na Vai-Vai”. Os arqueólogos da obra do Metrô encontraram em 2022 vestígios do quilombo Saracura, que existiu a partir do século XIX.

Mas voltando à periferia, território dos Racionais e de grande parte de seu público, apesar de todo o reconhecimento de sua contribuição à cultura brasileira, seguem perseguidos pela Polícia e cantando a vida dos periféricos que continua infernal. Quem não lembra da participação do grupo no palco da Praça da Sé na Virada Cultural de 2004 que resultou numa violenta intervenção policial e na proibição deles tocarem no centro de São Paulo por alguns anos? No rap “A Praça”, de 2007, eles mesmo registram:

 

Entraram e não bloquearam a força da África

Chamaram a Força Tática, o Choque, a cavalaria

Polícia despreparada, a violência em demasia

Mississipi em chamas, sou fogo na Babilônia

Tragédia, vida real, com a mão de um animal

Brutal com os inocentes, crianças, velhos, presentes

Ação inconsequente, covarde e desleal.

 

É tempo de derrubar o Borba Gato, é tempo de reconhecer os Racionais e a Vai-Vai como real patrimônio da cidade, é tempo de deixar os quilombos em paz…

 

*Silvana Jeha é historiadora, autora de Uma História da Tatuagem no Brasil e Aurora: memórias e delírios de uma mulher da vida

 

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