Nosso reencontro com as Locas
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Jaime Hernandez fala dos mais de 40 anos de carreira desde o lançamento de Maggie, a Mecânica
Por Marina Della Valle*
Os fãs brasileiros de Love & Rockets nascidos antes dos anos 2000 precisaram lidar com a frustração. O histórico de publicações descontinuadas deixava sempre um anseio por mais. Tivemos um gostinho da série de quadrinhos independentes mais falada dos anos 1980 na revista Animal, mas primeiras publicações do título em português chegaram só em 1991, pela Globo, dez anos depois da estreia independente dos irmãos Hernandez, que passaram a publicar pela Fantagraphics em 1982. Foram quatro números. Pouco diante da imensidão da série, mas o bastante para arrebanhar muitos fãs.
Numa época em que a internet era para poucos, os leitores brasileiros precisaram se virar. Comprar em dólar nem sempre era uma opção amigável ao bolso. Enquanto isso, as personagens vibrantes de Palomar e de Hoppers 13 seguiam firmes, envelhecendo, em histórias entremeadas e muito bem contadas. Quem botava a mão num exemplar emprestava para todo um grupo; quem descobria mais um pedaço da trama recontava num clima de afeto e fofoca. E assim se passaram mais de dez anos. Em 2004, veio a publicação de Sopa de Gran Peña, de Gilbert Hernandez, pela Via Lettera, sem outras edições. Em 2012, a Gal Editora publicou novamente as primeiras histórias de Locas, de Jaime, em dois números.
Foi só em 2016, quando a Veneta começou a publicar as histórias de Gilbert Hernandez, numa coleção hoje com quatro volumes de fôlego, que o leitor brasileiro teve, por fim, alguma continuidade. Em 2023, chegamos ao universo do outro irmão, a trupe adorável de Hoppers 13, amigas latinas do sul da Califórnia enfrentando a vida entre gangues, empregos subalternos, shows de punk rock e amores malfadados. Maggie, a Mecânica apresenta a dupla Maggie e Hopey no auge da juventude – e da juventude do autor, que estourou com 22 anos – , num universo com tintas de sci-fi e elementos fantásticos que, ao longo da série, passam a dar lugar a uma narrativa mais baseada na vida real.
Assim como na obra do irmão Gilbert, a narrativa é dominada por mulheres fortes, independentes, que espremem os limões da vida e são espremidas por eles, como só acontece na vida real. E é esse um dos grandes trunfos de Locas: a capacidade de soar real, verdadeiro. Se o universo de Gilbert vem com pitadas de realismo mágico, o de Jaime é calcado em vidas comuns. A fantasia dos primeiros números reaparece de um jeito bem localizado, na forma de super-heróis, por exemplo; mas a engrenagem principal de Locas é a vida de todo dia, seu microuniverso de encontros e desencontros, derrotas e triunfos, elipses e esclarecimentos.
São mais de quarenta anos de Love & Rockets, e, nos dias de hoje nossa amiga Maggie está com seus cinquenta anos. Muita coisa mudou desde os anos loucos do começo de Locas – não necessariamente para situações menos loucas. Mas, pensando na leva de leitores que chega agora, não é de bom tom adiantar muita coisa. (Crianças, hoje é tudo bem mais fácil, acreditem – e aproveitem. Boa jornada!). A conversa com Jaime Hernandez para falar de seu primeiro livro pela Veneta vem depois de um certo sabor elusivo, com um breve desencontro, compensado depois pela gentileza habitual de suas entrevistas. Imagino que tenha sido essa minha história com o trabalho dos Los Bros: nem sempre fácil de encontrar, mas, uma vez encontrada, é sempre um deleite. Na conversa abaixo, ele fala sobre o começo da revista, o desenvolvimento de escolhas narrativas e suas quatro décadas de carreira.
Veneta: Acabamos de publicar “Maggie, a Mecânica”, a primeira das histórias de Locas. Isso foi lançado em 1981, 82 se contarmos a edição da Fantagraphics. Você imaginou na época que estaria desenhando os mesmos personagens 40 anos depois?
Jaime Hernandez: Certo, de volta ao começo. Gilbert e eu estávamos desenhando quadrinhos para nós mesmos, e meu irmão Mario disse: “Ah, meu Deus, olha todos esses trabalhos, por que não publicamos nossos próprios quadrinhos?”, e nós dissemos ok, e publicamos, e a Fantagraphics pegou dentro de um ano, e foi assim fácil, foi uma coisa da noite para o dia, tivemos muita sorte, e tivemos muito pouco tempo para fracassar, sabe. Então foi muito legal, na verdade foi muito fácil, eles simplesmente disseram: “Podemos publicar, certo!”.
V.: Você era bem jovem, tinha 21, 22?
J. H.: Tinha 22.
V.: Olhando para trás, já desejou ter feito algo diferente?
J. H.: Não, porque é o que eu sempre quis fazer, e estou muito feliz por poder fazer isso 40 anos depois, ainda poder, sabe. É, isso era tudo o que eu sempre quis fazer desde que era menino, eu só queria desenhar quadrinhos, e as pessoas diziam: “Não acha que deveria ter feito outro tipo de arte?”. Isso é exatamente o que eu queria fazer, é o meio perfeito para minhas histórias, minha arte, não consigo imaginar um jeito melhor de fazer isso. E é claro que no começo era sem internet e coisas assim, era tudo feito à mão, pelos correios. Eu não sei, é algo que ainda gosto de fazer, a única diferença é que agora escaneio num computador e mando, mas é a única mudança, eu ainda gosto da parte mão na massa, eu meio que gosto do controle, é tudo feito por essa mão aqui.
+++ Leia Mais: Veneta entrevista Gilbert Hernandez
V.: Você segue conseguindo novos leitores, nós publicamos Maggie, a Mecânica agora e temos novos leitores, o retorno muda? O retorno que você recebe dos leitores mudou ao longo dos anos?
J. H.: Ah, um pouco, mas ainda é “eu acabei de conhecer”, “é novo”, e eu realmente aprecio essas coisas, fico grato, sabe. Então não é muito diferente dos leitores antigos, mas é bom que [Love & Rockets] ainda esteja por aí, que as pessoas mais jovens ainda estejam escolhendo, porque se não estivessem, eu não sei.
V.: Já se perguntou como seu trabalho seria se começasse agora? Por que há um panorama político muito diferente nos EUA, imagino que latinos tenham mais representação, e questões de gênero e raça estão na dianteira das discussões, não tenho certeza de que sejam discussões boas ou más, mas estão na dianteira, e o rock está fora das paradas pop. Já imaginou como seria se começasse agora, de que maneiras seria diferente?
J. H.: De uma maneira, seria diferente por que o material, muito do material que estávamos fazendo naquela época era novidade, em 81, quer dizer, estávamos escrevendo sobre nossas vidas, e sobre onde crescemos no sul da Califórnia, e naquele tempo a maioria das pessoas do mundo não sabia nada de onde nós vínhamos, e muita coisa se atualizou, agora você vê na televisão, agora muita gente sabe como é morar aqui, então não sei qual abordagem eu teria se começasse agora, e também, eu tenho mais de 60 anos, tenho energia para convencer as pessoas de como isso é bom?[risos] A diferença é que era uma tela aberta na época, não tinha um mercado de quadrinhos alternativo aqui, na época, era fácil publicar o que conhecíamos, porque era novo para as pessoas, mas agora tudo está atualizado, você tem personagens em programas de TV, em quadrinhos, entretenimento e filmes que se comportam como Maggie e Hopey, mas naquele tempo, as pessoas diziam: “Esses personagens são novidade para mim, nunca encontrei pessoas assim antes, especialmente nesta parte do mundo…” Acho que o que seria diferente é que eu iria para uma direção diferente, ou talvez não fosse fazer quadrinhos. É difícil dizer, porque estou fazendo isso há tanto tempo que não consigo imaginar onde eu estaria agora. Agora as pessoas dizem “Love & Rockets está conosco desde sempre”, se fosse novo, não sei se as pessoas iam se importar, o mercado alternativo aqui nos Estados Unidos é tão vasto agora, é difícil encontrar algo revigorante e novo, do qual ninguém ouviu falar.
V.: Seu trabalho, e o do Gilbert também, têm essas personagens femininas muito fortes, e fico imaginando por que vocês se concentraram em mulheres na época, vocês eram muito jovens, era algo novo, não me lembro de ver isso em nenhum quadrinho na época. Como isso aconteceu? Além disso, você deve ter um sentido de observação muito forte, porque às vezes é difícil acreditar que foi escrito por um homem, para mim tem um eco muito verdadeiro. Foi uma escolha, para começar?
J. H.: Eu poderia facilmente dizer, bem, por que eu gosto de mulheres, gosto de escrever mulheres, e gosto de desenhar mulheres, essa é a resposta mais honesta, mas há muita coisa nisso, de onde nós viemos, de onde eu e Gilbert viemos, até onde nosso cérebros e nossa observação, como você disse, tudo que posso pensar é que eu amo mulheres, sempre amei mulheres, e era um tipo de obrigação nossa criar personagens mulheres que vinham de um ponto de vista honesto, um ponto de vista sensível, era um tipo de obrigação, a obrigação de acertar, e conhecíamos muitos tipos de mulheres, de novo, onde nós crescemos, eu achava que eram mulheres incríveis, estava feliz em ter aquelas mulheres como amigas, via um monte de comportamentos que não conhecia quando estava crescendo, por que eu era tímido no secundário, era difícil falar com mulheres, mas conforme eu fui ficando mais velho e passei a conhecer mais mulheres e a ficar menos tímido, e foi quase como uma revelação [risos], tipo, essas mulheres são maravilhosas, e não vejo isso na televisão, ou em quadrinhos, ou filmes e outros tipos de perspectiva artística, então tirei vantagem disso. Apenas aconteceu, sabe, encontrar um monte de mulheres que eram fascinantes, e era algo que eu queria ir atrás, era quase um desafio, tipo, certo, não sou uma mulher, sou um homem heterossexual, e, no entanto, há algo fascinante aqui sobre esse mundo do qual eu quase não faço parte. Não sei, é difícil de explicar, basicamente por que eu amo mulheres e queria botar isso pra fora. Eu tive uma boa resposta no começo, de mulheres, e isso foi muito legal, eu não sabia se estava fazendo certo, e então recebi esse apoio, comecei a ter mais mulheres leitoras que podiam de fato se identificar com o que eu dizia, e esse foi o dia mais feliz da minha vida, quando tive esse apoio.
+++ Leia Mais: Um encontro com Gilbert Hernandez
V.: Outra coisa que, é claro, é muito marcante em Love & Rockets é que as personagens envelhecem e seguem envelhecendo. Como você trabalha isso, foi sempre fácil fazer com que elas envelhecessem e ficassem mais maduras? Você já teve algum período em que pensou que, bem, não sei como seria, agora que elas têm uns 35, já teve alguma dificuldade para manter esse envelhecimento? Como faz?
J. H.: Houve algumas coisas que precisei aprender com o tempo sobre envelhecer, sabe, por que quando comecei com isso eu era um jovem adulto, e não conseguia ver como certas pessoas em minha vida, o que elas seriam quando ficassem mais velhas, certos personagens eu não conseguia imaginar, quanto mais envelheciam, eu meio que parei de escrever sobre eles, porque não conseguia descobrir para onde as vidas deles estavam indo. Tinha muita gente que eu conheci naquela época, no começo dos vinte anos, sabe, molecada punk rock, eu não conseguia ver um futuro para eles, eu não conseguia ver um futuro para mim também, mas eu tinha esses quadrinhos, isso deixou mais fácil, mas tive certos amigos que influenciaram minha personagem Hopey, que eu pensava, não consigo imaginar essas pessoas ficando mais velhas, ou tendo filhos, ou tendo vidas com parceiros e coisas assim, então era meio complicado tentar descobrir quem essas pessoas eram conforme eu ficava mais velho. Uma coisa que fiz foi apenas prestar atenção em como eu envelhecia, conforme os quadrinhos progrediam, eu me vi ficando mais responsável com a idade, comecei a pensar, bem, não quero mais acordar de cara na sarjeta por estar bêbado, eu não queria mais aquilo, coisas assim, e entrei em relacionamentos, casamentos, então eu observava como essas coisas funcionavam, e lá pelos trinta e cinco, velhos amigos punk começaram a reaparecer, que eu não via desde os velhos tempos, e eu ficava sabendo das vidas deles, como sobreviveram, como alguns deles não sobreviveram, muita gente morreu por abuso de drogas, coisas assim, velhos amigos, então estava tentando pensar, certo, para onde foram essas vidas? Foi basicamente apenas seguir como eu estava envelhecendo, como nossos amigos estavam envelhecendo, amigos que nunca mais vi, amigos que não via por muitos anos, então só comecei a observar como a vida seguia contra o tique-taque do relógio, e isso me ensinou muito, sabe, apenas observar sem julgamento.
V.: Hoje em dia, por termos tido uma mudança difícil aqui no Brasil e nos Estados Unidos, imagino que no mundo todo, você já imaginou como suas personagens iriam reagir? É claro, podemos entender a escrita de personagens mulheres e LGBT como escolhas políticas, mas você nunca entra diretamente em política, entra? Eu me surpreendi como algumas pessoas envelheceram também no aspecto político. Já imaginou como suas personagens reagiriam aos últimos dez anos da política nos EUA?
J. H.: Só quando fiquei mais velho, não estava muito interessado em política até quando tinha, vamos dizer, uns trinta anos, eu não votava, era uma daquelas pessoas burras que acreditavam, ah, não vai fazer nenhuma diferença em nada disso, e foi só quando tinha uns trinta anos que comecei a prestar atenção de verdade, e eu estava com uma mulher que se interessava mais por política e coisas assim. Mas, no que diz respeito ao meu trabalho, a política não é tão importante quanto as personalidades das pessoas e o que a vida de todo dia faz com elas, é para isso que dei mais importância, foi quase como se eu acreditasse mais nas pessoas que não têm muita escolha, a maioria das minhas personagens vem de um lugar em que elas não têm tantas escolhas quanto, vamos dizer, outra pessoa, então estava mais preocupado com crescer em uma vizinhança, as coisas menores, do que com as coisas grandes do mundo. Agora aqui você não consegue evitar, e é realmente interessante [risos]. Agora penso muito nisso, mas escolho ainda manter o foco em uma pessoa ganhando a vida, sabe, ainda prefiro ver o que uma mulher ou um homem está enfrentando como problemas pessoais. É, política… Odeio dizer isso, mas a política é burra demais para mim, é muito estúpido o jeito que eles brigam, e o jeito que trapaceiam, e o jeito [risos], é algo que prefiro não colocar nos meus quadrinhos, acontece na minha vida todo dia, mas nos quadrinhos, não é que…. Não sei, parece muito burro para mim, e prefiro não escrever sobre isso. Sabe, eu vejo as notícias todos os dias, e Deus, tudo o que posso fazer é votar e talvez isso faça a diferença, então, de qualquer jeito, é algo que prefiro deixar fora dos meus quadrinhos. Ou a maior parte.
V.: De volta a “Maggie, a Mecânica” e ao começo, nós temos um aspecto sci-fi muito forte aqui, com mecânicos prosolares nesse mundo muito fantástico, mas isso meio que desaparece conforme a série continua. Já pensou em por que isso aconteceu, por que o aspecto sci-fi vai para segundo plano com o tempo e você começa a se concentrar na vida diária, muito real, de suas personagens?
J. H.: Para começar, se você olhar para as primeiras histórias do livro, eu estava jogando minha vida inteira nelas. Eu não tinha foco em onde estava indo, só desenhava o que me interessava desde que era criança, sabe, ficção científica em forma de velhos filmes B e coisas assim, e filmes de monstro. Conforme os quadrinhos começaram a progredir, eu comecei a me interessar mais sobre o que as personagens estavam pensando do que em desenhar um dinossauro no fundo, ou uma nave espacial, percebi que a vida que eu vivia era tão empolgante quanto isso, e eu estava muito preocupado sobre quem eram aquelas pessoas, como elas viviam, como morriam… Era muito empolgante para mim que a minha vida real fosse mais importante que uma nave espacial [risos], e então eu meio que aceitei um desafio, vou dar o meu melhor para divertir vocês com pessoas normais chatas morando em uma cidade chata do sul da Califórnia, vou tornar isso tão empolgante quanto, digamos, uma aventura na selva e dinossauros e naves espaciais e robôs e coisas assim, estava tentando deixar vocês mais interessados em vidas chatas. Tentar tornar isso interessante, eu fiz esse desafio a mim mesmo.
*Marina Della Valle é tradutora, jornalista e leitora de Love & Rockets desde os anos 90. Traduziu Sopa de Lágrimas, de Gilbert Hernandez, para a Veneta.