Introdução de História Mínima do Neoliberalismo, por Fernando Escalante Gonzalbo
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*Por Fernando Escalante Gonzalbo
Embora possa parecer um pouco estranho, e é, precisamos começar a história dizendo que o neoliberalismo realmente existe e tem quase um século de existência. Claro, tem perfis obscuros, como tantas coisas, e claro que há o uso retórico do termo, impreciso, de intenção política, que não ajuda a explicar as coisas, mas o neoliberalismo é um fenômeno perfeitamente identificável, cuja história pode ser contada. É um programa intelectual, um conjunto de ideias sobre a sociedade, a economia, o direito, e é um programa político, derivado dessas ideias.
Para começar, não se trata de um programa simples, monolítico, nem tem uma doutrina única, simples, indiscutível. Mas tampouco isso é estranho, pelo contrário, é a regra na história das ideias políticas. Seria perfeitamente possível, por exemplo, escrever uma história do socialismo, e todos saberíamos sobre o que estamos falando, mesmo sabendo que não existe uma única versão do socialismo, e embora uma história assim tivesse que incluir figuras tão diferentes como Jean Jaurès, Salvador Allende, Eugene Debs, Friedrich Ebert ou Pablo Iglesias. Da mesma forma, seria possível escrever uma história do liberalismo que incluísse John Stuart Mill, Camillo Cavour, Alexis de Tocqueville, Benito Juárez e José María Blanco-White, todos liberais, com todas as suas diferenças – e estas não seriam um obstáculo. Quer dizer, a variedade é normal, não é um problema.
A expressão neoliberal, neoliberalismo, começou a ser usada de um modo mais ou menos habitual na década de oitenta do século passado e se generalizou nos últimos anos para se referir a fenômenos muito diversos. O uso é bastante amplo, às vezes impreciso porque é usada como adjetivo, com intenção pejorativa, para desqualificar uma iniciativa legal, uma decisão econômica ou um programa político. O resultado é que a palavra terminou perdendo consistência, tornando-se mais ambígua à medida que é mais usada. Nesse sentido, neoliberal pode ser quase qualquer coisa, até vir a ser quase tudo, e quase nada. Por isso digo que é preciso começar afirmando que o neoliberalismo existe. E por isso é necessário, em seguida, se esforçar por restabelecer o sentido da palavra, colocar limites nela, para que possamos saber do que estamos falando.
O neoliberalismo é, em primeiro lugar e sobretudo, um programa intelectual, quer dizer, um conjunto de ideias cuja trama básica é compartilhada por economistas, filósofos, sociólogos, juristas, e não é difícil identificá-los. É possível fazer uma lista de nomes: Friedrich Hayek, Milton Friedman, Louis Rougier, Wilhelm Röpke, Gary Becker, Bruno Leoni, Hernando de Soto, mas não é necessário. Eles têm algumas ideias em comum, também diferenças, às vezes importantes; no mais fundamental, identificam- se pelo propósito de restaurar o liberalismo, ameaçado pelas tendências coletivistas do século XX. Nenhum deles diria outra coisa.
Mas o neoliberalismo é também um programa político: uma série de leis, arranjos institucionais, critérios de política econômica e fiscal, derivados daquelas ideias, e que têm o objetivo de parar e anular o coletivismo em aspectos bastante concretos. Nisso, como programa político, foi extremamente ambicioso. Do mesmo núcleo surgiram estratégias para quase todas as áreas: há uma ideia neoliberal da economia, que talvez seja a mais conhecida, mas há também uma ideia neoliberal da educação, dos cuidados médicos e da administração pública, do desenvolvimento tecnológico, uma ideia sobre o direito e a política.
Isso quer dizer que a história do neoliberalismo é, de um lado, história das ideias, e de ideias muito diferentes, e de outro, história política e história institucional. Também quer dizer, por outro lado, que o neoliberalismo é uma ideologia no sentido mais clássico e mais exigente do termo – que não é necessariamente pejorativo. Direi mais: é sem dúvida a ideologia mais bem-sucedida da segunda metade do século XX e do começo do século XXI.
Nenhum sistema de ideias pode ser traduzido diretamente em uma ordem institucional, nenhum pensador de algum alcance reconheceria suas ideias no arranjo jurídico, político, de um país concreto. O regime soviético não era uma materialização das ideias de Karl Marx, embora fosse constantemente mencionado, nem o sistema neoliberal vigente em boa parte do mundo é reflexo exato do que Friedrich Hayek chegou a imaginar, por exemplo. Mas o primeiro era uma derivação discutível do marxismo, assim como o segundo é uma derivação discutível do projeto neoliberal de Hayek, Coase e Friedman. E poucas vezes, talvez nunca, uma ideologia conseguiu se impor de forma tão completa: não apenas certas políticas econômicas e financeiras foram adotadas no mundo todo, mas se popularizou a ideia da
Natureza Humana em que se inspiram, e com ela uma maneira de entender a ordem social, uma moral, um leque amplíssimo de políticas públicas.
O neoliberalismo transformou a ordem econômica do mundo, além das instituições políticas. Transformou o horizonte cultural de nosso tempo, a discussão de quase todas as disciplinas sociais, modificou de modo definitivo, inquestionavelmente, o panorama intelectual, e contribuiu para a formação de um novo senso comum. Essa é a história que quero contar nas páginas seguintes.
Não é exagerado dizer que vivemos, globalmente, um momento neoliberal. Para ter uma imagem mais nítida do que isso significa, podemos imaginar uma evolução histórica do mundo ocidental, cuja estrutura nos últimos dois séculos seria mais ou menos a seguinte. Em primeiro lugar, há um momento liberal, derivado da ilustração, que começa nas últimas décadas do século XVIII e inclui a revolução estadunidense, a revolução francesa, as independências americanas; é um momento que tem seu auge em meados do século XIX, com a ampliação dos direitos civis e políticos, e que entra em crise como consequência da pressão do movimento operário e das várias formas de socialismo. Continua com o que se poderia chamar o momento keynesiano, ou bem-estarista, que se desenha no final do século XIX e acaba se impondo de maneira geral depois da Crise de 1929 e sobretudo com a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Previdência social, serviços públicos, tributação progressiva. Chega até a década de 1970. E então começa o momento neoliberal, no qual estamos, cuja origem está na discussão do keynesianismo dos anos 1940, mas que vai se impondo de forma progressiva e massiva a partir de 1980, e cujo predomínio em termos gerais continua até hoje.
Convém, a princípio, propor uma ideia esquemática do neoliberalismo, para que possamos nos entender. Apesar de todas as diferenças que existem entre seus partidários – e às vezes são realmente importantes –, há um conjunto de ideias básicas que todos eles compartilham e que formam, por assim dizer, a coluna vertebral do programa. Em primeiro lugar, caracteriza-se por ser muito diferente do liberalismo clássico, do século XIX. Na verdade, já veremos com mais atenção, o neoliberalismo é em grande parte o produto de uma crítica ao liberalismo clássico. Alguns propagandistas, sobretudo mais recentemente, preferem adotar a imagem de Adam Smith como seu emblema e reivindicam uma longa continuidade, de séculos, das ideias liberais, inclusive das leis e das políticas liberais, como se as diferenças fossem pouco importantes. A verdade é que a ruptura é clara, definitiva. Permanece o prestígio de Adam Smith, a metáfora da “mão invisível”, mas pouco mais que isso, nada substantivo.
A diferença decorre basicamente da convicção de que o mercado não é algo natural, não surge de maneira espontânea nem se sustenta sozinho, mas precisa ser criado, apoiado, defendido pelo Estado. Quer dizer, a abstenção não é suficiente, não basta o famoso laissez-faire, deixar fazer, para que ele surja e funcione. Como consequência disso, corresponde ao Estado um papel muito mais ativo do que imaginavam os liberais dos séculos anteriores. O programa neoliberal, contra o que imaginam alguns críticos, e contra o que proclamam alguns propagandistas, não pretende eliminar o Estado, nem o reduzir a sua mínima expressão, mas transformá-lo, de modo que sirva para sustentar e expandir a lógica do mercado. Ou seja, os neoliberais precisam de um novo Estado, às vezes um Estado mais forte, mas com outros fins.
Um segundo ponto em comum: a ideia de que o mercado é fundamentalmente um mecanismo para processar informação, que mediante o sistema de preços permite saber o que os consumidores querem, o que se pode produzir, quanto custa produzir. Na verdade, o mercado oferece a única possibilidade real para processar toda essa informação, e por isso oferece a única solução eficiente para os problemas econômicos, e a melhor opção, a única realista para chegar ao bem-estar. A concorrência é o que permite que os preços se ajustem automaticamente e,
ao mesmo tempo, garantam o melhor uso possível dos recursos. Não há melhor alternativa.
O mercado é insuperável em termos técnicos. Mas também em termos morais. Pois permite que cada pessoa organize sua vida em todos os terrenos de acordo com seu próprio juízo, seus valores, suas ideias do que é bom e desejável. O mercado é a expressão material, concreta, da liberdade. Não há outra possível. E toda interferência no funcionamento do mercado significa um obstáculo para a liberdade – seja proibindo o consumo de drogas, a contratação de alguém para trabalhar doze horas por dia ou a procura por petróleo. Os neoliberais tendem a desconfiar da democracia, dão sempre prioridade absoluta à liberdade, quer dizer, ao mercado, como garantia da liberdade individual.
Outra ideia acompanha o programa neoliberal em todas suas versões: a ideia da superioridade técnica, moral, lógica, do privado sobre o público. Há muitas fórmulas, muitos registros, há muitas maneiras de explicá-la. No geral, assume-se que, em comparação com o privado, o público é sempre menos eficiente, seja na produção de energia, administração de um hospital ou construção de estradas; assume-se que o público é quase por definição propenso à corrupção, a arranjos vantajosos a favor de interesses particulares, algo inevitavelmente político, desonesto, turvo. E por isso deve-se preferir, sempre que possível, uma solução privada.
Derivadas dessas três ideias básicas, que podem ser elaboradas de várias maneiras, há outras também compartilhadas de um modo bastante geral. Por exemplo, que a realidade última, em qualquer assunto humano,
são os indivíduos, que por natureza estão inclinados a perseguir o interesse próprio e que sempre desejam obter o maior benefício possível. Ou, por exemplo, a ideia de que a política funciona como o mercado e que os políticos, assim como os funcionários e os cidadãos, são indivíduos que procuram o máximo benefício pessoal, nada mais que isso, e que a política precisa ser entendida nesses termos – sem o apelo desonesto do interesse público, bem comum ou qualquer coisa parecida. Ou que os problemas que possam ser gerados pelo funcionamento do mercado, pela contaminação ou saturação ou desemprego serão resolvidos pelo mercado, ou que a desigualdade econômica é necessária, benéfica na verdade, porque assegura um maior bem-estar para o conjunto. Não acho que são necessários mais detalhes por enquanto. Em algumas poucas palavras, isso é o neoliberalismo como programa intelectual. Agora, a partir dessas ideias se desenvolveu uma prática, e foi promovido um conjunto de reformas legais e institucionais que terminaram impondo-se praticamente no mundo todo. É fácil reconhecer as linhas comuns. Privatização de ativos públicos: empresas, terras, serviços; liberalização do comércio internacional; liberalização do mercado financeiro e do movimento global de capitais; introdução de mecanismos de mercado ou critérios empresariais para tornar mais eficientes os serviços públicos; e um impulso sistemático para a redução de impostos e do gasto público, do déficit, da inflação.
Nada disso, nem nas ideias nem nas recomendações práticas, é totalmente novo. A formação do programa neoliberal foi longa e complicada. A novidade nas décadas da virada do século é que tudo isso se cristalizou em um movimento global, que conseguiu transformar o horizonte cultural do mundo inteiro em pouco mais de vinte anos. O que apresentamos a seguir é uma história mínima desse processo, uma tentativa de explicar de onde vêm as ideias e como se traduziram em iniciativas concretas.
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