Corpos Inviáveis
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Por Maria Clara Carneiro*
Publicado originalmente no site Balbúrdia
Jeanine está sendo entrevistada por um rapazote, o Matthias Picard. A um determinado momento, ela percebe rabiscos no caderno dele, a quem ela confiava a sua história:
– Você está desenhando quem?
– Seu pai.
– Mas… você não sabe como ele se parece.
– Não, eu imagino.
– Ele era italiano, o meu pai…
É a história dela, esse livro, com seu nome em uma capa de um vermelho pálido, que Matthias tenta retratar sem se impor. Se o efeito de rabisco dessa página nos lembra que é a mão de Matthias desenhando ali (a grafiação), a conversa dos dois que se interpola ao desenho é a própria voz de Jeanine que se faz ouvir, que tenta controlar sua própria narrativa.
Pois é pelo controle sobre a própria vida que Jeanine viveu. A narrativa sobre o pai acima é a de um homem controlador, que direcionava a raiva por não poder controlar o corpo da filha batendo na sua mulher, mãe de sua filha.
O que Matthias vai escrever sobre sua vida lhe importa, e muito. Afinal, ela faz parte desse corpo de gente esquecida. AJeanine que vemos ali, uma senhorinha beirando os sessenta, ainda se prostituía. Muitas vezes, ao longo do livro, o quadrinista, que também é seu vizinho, passa por ela parada em seu carro, na rua, acompanhada de seu cãozinho, seu cigarro, sua peruca, maquiagem e seios fartos.
Jeanine ou Isa, a Sueca, começou a se prostituir em 1964, aos 22 anos. Algo por acidente, uma confusão das que acontecem com mulheres que precisam sair à noite – horário das mulheres que são menos mulheres, como vamos ver depois.
“A gente fez amor”, ela conta sobre o primeiro cliente, homem casado que a confundiu com prostituta enquanto ela terminava o expediente de outro trabalho, bilheteira no cinema da cidade.
O livro Jeanine foi publicado inicialmente em capítulos na revista Lapin, da L’Association. Quando comecei a participar mais ativamente de conversas envolvendo os direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores sexuais, fui procurar saber como ia a Jeanine/Isa. Descobri que ela tinha falecido um ano antes (2015), mas não consegui muita informação sobre ela além das resenhas desse livro.
A única notícia que achei era do site DNA, para o qual tinha de pagar para ler o texto completo…
“Ela militava pelos direitos das prostitutas”, diz o texto que precede sua imagem real, rosto que eu desconhecia. O nariz oblongo e os olhos bem espertos, meio escondidos pelos cabelos bem alinhados.
Fico voltando à sua foto, para escrever aqui. Apesar das cenas das conversas e da delicadeza do desenho de Matthias, intercalando a narrativa imaginada a partir do que ela lhe diz, sinto falta de saber melhor a sua história. Ou melhor: como faz falta conhecer essas mulheres.
*Maria Clara Carneiro é professora adjunta da Universidade Federal de Santa Maria e tradutora de Jeanine, entre várias outras obras.
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