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Um papo com Ben Passmore, por Ramon Vitral

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Ben Passmore expõe o mundo por meio do futebol americano em Esporte é de Matar: “Nossas indústrias esportivas estão profundamente ligadas aos militares e à direita”

 

*Por Ramon Vitral


Gosto muito de histórias em quadrinhos. Talvez eu goste mais ainda de futebol. Não tenho certeza, mas acho que se trabalhasse escrevendo sobre futebol, talvez gostasse mais de HQs. Enfim, minhas paixões por quadrinhos e futebol vão além das linguagens de ambos. Gosto de uns gibis meio herméticos e curto uns tatiquês futebolísticos, mas suspeito que meus interesses em ambos, hoje, dizem respeito àquilo que vai além deles.

Está nesse além, possivelmente, a minha admiração por Esporte é de Matar, obra publicada em português pela Veneta, com tradução de Mateus Potumati. A HQ de Ben Passmore é ambientada no mundo do futebol americano e protagonizada por jogadores e torcedores de futebol americano, mas o futebol americano é pano de fundo para discussões e reflexões maiores.

 

E olha, o meu lance é futebol. O futebol que a gente vê e joga por aqui. Não entendo nada de futebol americano e não faço questão nenhuma de entender. Para mim parece um rugby que só se joga nos Estados Unidos e na final do principal torneio deles o intervalo é mais aguardado que a partida em si. Mas o próprio Ben Passmore também não se interessa tanto assim por futebol americano.

“É incrível assistir à fisicalidade do futebol americano, mas acho que fico mais horrorizado do que fascinado pela cultura em torno desse esporte”, me disse o quadrinista em papo por email.

Ele depois se aprofundou um pouco mais nessa relação de repulsa e fascínio: “O futebol americano é notoriamente influente e com grande alcance nos Estados Unidos. Só nos foi permitido ter sucesso no esporte e no entretenimento, então alguns dos nossos comentaristas sociais mais ruidosos e enfáticos vieram desses setores Esportes, em geral, têm uma plataforma enorme na comunidade negra por esse motivo”.

Peça de teatro

Esporte é de Matar é um caos. Mas é uma bagunça boa. Mostra o choque de realidades e ideias entre torcedores, jogadores e pensadores do futebol americano. Instantes antes de uma edição do Super Bowl, a final do grande torneio deles, vários personagens vão se chocando e se confrontando até esses vários conflitos culminarem em uma guerra civil.

Para mim é um gibi com jeito de teatro: poderia ser encenado em um palco, com um estádio de futebol americano de papelão ao fundo, enquanto toda essa galera vai entrando e saindo e expondo seus posicionamentos em relação ao mundo por meio de sua relação com o esporte. O autor concorda comigo.

“Acho que Esporte é de Matar poderia funcionar bem como peça de teatro”, refletiu Passmore. “No passado, meus quadrinhos não eram particularmente guiados pelos personagens, então, quando me sentei para escrever Esporte é de Matar, eu queria escrever algo onde as personalidades e crenças dos personagens se confrontassem para valer. Elimine todos os tumultos e grande parte do livro são personagens conversando”.

Tijolos nos nazistas

Ben Passmore vive na Filadélfia, mas cresceu na zona rural do estado de Massachusetts. Ele lia quadrinhos de super-heróis nas farmácias locais, do lado das estantes em que eles ficavam expostos e sempre o mais rápido possível. A ideia era acabar de ler antes de ser expulso por um dos funcionários. Ele ia todos os dias depois da escola – de onde também era expulso diariamente.

O artista me disse que não tem certeza se a paixão pelas HQs foi fomentada por esse esforço para lê-las ou pelos excessos de músculos e os uniformes de spandex dos heróis de Marvel e DC. Seja como for, ele começou a desenhar seus próprios gibis, imitando os excessos de astros da época, como os desenhistas Todd McFarlane e Jim Lee. Seu traço atual, caricato, não tem nada a ver com as firulas de Marvel e DC.

A temática de seus quadrinhos também mudou: “Nada desse estilo [de super-heróis do início dos anos 1990] foi transferido para a forma como desenho agora. Mas acho que ele fomentou um amor pelo dinamismo visual e pelo espetáculo. A diferença é que desenho pessoas jogando tijolos nos nazistas em vez de um batarang, ou qualquer coisa do tipo”.

Ele também me resumiu sua jornada profissional até aqui: “Por alguns anos, publiquei por conta própria todos os meus quadrinhos estranhos anarquistas e os vendi em shows ou por correspondência. Quase parei de tentar fazer quadrinhos em tempo integral porque não era financeiramente sustentável. Eu também tinha todas as vantagens, morava de graça numa ocupação e comia de graça na maior parte do tempo. Mas era quase impossível vender mais de algumas centenas de quadrinhos por ano. Felizmente comecei a ser contratado por alguns veículos para fazer quadrinhos políticos durante o início da era Trump”.

Nacionalismo e forças armadas

Esporte é de Matar tem muito diálogo com o universo do futebol brasileiro. Passmore fez uma sátira da realidade do futebol americano para falar sobre racismo, gentrificação, identidade, alienação e violência policial. O diálogo é enorme com o que se vê nos estádios brasileiros, com suas torcidas cada vez mais elitizadas e brancas.

“O futebol americano é uma ferramenta de redesenvolvimento e gentrificação”, afirmou Passmore na nossa conversa. “Ele está profundamente ligado ao nacionalismo e às forças armadas.”

Vida política

Comentei com Passmore sobre o mérito de Esporte é de Matar em me deixar confuso nas minhas avaliações sobre os personagens. Senti atração e repulsa pela maioria deles em mais de um momento do livro. A ideia dele era essa. O autor me disse que investigou as deficiências de suas próprias crenças e expôs suas inconsistências políticas. Ele também fez o mesmo com as ideias com as quais se opõe.

“Tenho quarenta anos agora, com todo o transtorno de estresse pós-traumático e os danos que advêm de ser um velho anarquista, e o que me preocupa é que não temos clareza sobre o quão confusa é a fenomenologia da vida política. Com exceção dos racistas brancos, eles são bem simples, na minha opinião”.

“Portanto, ter sentimentos confusos sobre os personagens de Esporte é de Matar é natural. O que espero que as pessoas não façam é levantar as mãos e dizer ‘bem, todo mundo é terrível’. Há muitos gestos sinceros em Esporte é de Matar e se há alguma receita específica para o que deveríamos fazer politicamente, ela está ali”.

Prêmios

Ben Passmore tem no currículo um troféu do Prêmio Ignatz, vencido em 2017, na categoria de melhor HQ, por seu álbum Your Black Friend. A obra rendeu a ele uma indicação ao Prêmio Eisner de melhor edição única.

“É difícil imaginar o futuro de forma otimista levando em conta como as coisas estão indo mal”, me disse o quadrinista. “Certamente não creio que uma série de comunas anarquistas ou revoltas proletárias surgirão em todos os cantos do mundo e criarão o planeta dos nossos sonhos. Pelo menos em um futuro próximo”.

Conheci seus trabalhos por meio do site de quadrinhos virtuais The Nib – alguns deles republicados aqui no site da Veneta.

Torço por mais quadrinhos dele publicados por aqui. Ele não se propõe a ser nenhum guru com respostas e soluções para um mundo melhor, mas seus gibis oferecem reflexões que apontam caminhos interessantes. Ainda que ele mesmo não seja tão otimista assim.

“Acho que o melhor que podemos esperar agora é que as pessoas acordem para o fato de que não é suficiente votar uma vez por ano e retuitar algumas coisas interessantes no X ou no Meta. Não há partido ou ONG que possa salvá-lo, temos que acreditar em algo fundamentalmente diferente. Precisamos compreender que somos nós que nós estamos esperando para salvar o mundo.”

Leia a primeira coluna do Ramon no blog: Miguel Vila celebra voyeurismo em Fiordilatte.

 

Oi. Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista, edito o blog Vitralizado, sou autor do livro Vitralizado – HQs e o Mundo (MMarte), e colunista no blog da Veneta. Minha proposta por aqui é garimpar o catálogo da editora, títulos antigos e lançamentos, entrevistar autores, analisar algumas obras, refletir sobre arte e a nossa realidade. Volto em 15 dias. Até!

 

 

 

 

 

 

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