Bryan Talbot, o David Bowie dos quadrinhos
*Por Ramon Vitral
Bryan Talbot, Mary M. Talbot, A Virgem Vermelha e o anarquismo nas HQs britânicas
Suspeito que a primeira HQ de Bryan Talbot que li foi alguma edição avulsa de Sandman. Eram tantos artistas fazendo parceria com Neil Gaiman que o nome dele deve ter passado batido para mim. Já a primeira obra que li consciente de sua autoria foi o volume de estreia de As Aventuras de Luther Arkwright no Brasil. Lembro da capa, o personagem que dá nome ao título apontando uma arma contra o leitor e segurando com a outra mão uma bandeira do Reino Unido.
Já volto ao Reino Unido.
A HQ mais recente de Bryan Talbot que li foi A Virgem Vermelha, com roteiro da escritora e pesquisadora Mary M. Talbot, publicada em português pela editora Veneta (com tradução de Ludimila Hashimoto). Lançada originalmente em 2016, trata-se da terceira parceria do casal. Eles primeiro publicaram Dotter of Her Father’s Eyes (2012), depois Sally Heathcote: Suffragette (2014) e mais recentemente Rain (2019).
Em 2014 a Biblioteca Britânica hospedou a maior exposição já realizada sobre a história dos quadrinhos britânicos. Com curadoria do crítico e pesquisador Paul Gravett e do pesquisador e quadrinista John Harris Dunning, Comics Unmasked – Art and Anarchy in the UK (Quadrinhos Desmascarados – Arte e Anarquia no Reino Unido, em tradução livre) ocupou grande parte do primeiro andar da biblioteca entre 2 de maio e 19 de agosto daquele ano.
A Biblioteca Britânica é a biblioteca nacional do Reino Unido. Ela é mantida pelo governo britânico e tem um acervo estimado em mais de 170 milhões de obras. Estão lá desde a Carta Magna, datada de 1215, estabelecendo os limites do poder real, a
manuscritos de algumas músicas dos Beatles. Trata-se, possivelmente, do maior acervo do mundo dedicado à língua inglesa. Em 2014, grande parte de sua programação foi voltada para os quadrinhos e Talbot foi um dos protagonistas.
Retrato dos quadrinhos britânicos
Estive na exposição londrina e escrevi sobre ela para o Estadão. Contei como Gravett e Dunning dividiram o evento em seis temas e ambientes: violência, sociedade britânica, política, sexo, estilos e autores e linguagem. A mostra consistiu em uma grande celebração à subversividade das HQs britânicas, chamando atenção para obras e autores conhecidos por sua combatividade em relação a injustiças, preconceitos, questões sociais e sexuais. Foi lá que compreendi a influência e o impacto de Talbot para as HQs locais.
O autor foi destaque nas paredes do evento, em seu catálogo e na programação paralela da exposição. Em uma conversa com o público em um anfiteatro da Biblioteca Britânica, vi sua versatilidade sendo celebrada pela mediadora do evento ao apresentá-lo como “o David Bowie dos quadrinhos”.
O catálogo da exposição diz sobre o coautor de A Virgem Vermelha: “Luther Arkwright posicionou Talbot como um dos escritores-artistas mais talentosos da Grã-Bretanha, com suas representações densas de arquitetura fantástica e tecnologias sci-fi impressionando os leitores. O progresso de Talbot é um retrato interessante da história dos quadrinhos na Grã-Bretanha. Começando em zines e quadrinhos underground na década de 1970, ele partiu para semanários de quadrinhos como a 2000 AD, principalmente como colaborador da série Nemesis, escrita por Pat Mills. Depois ele se mudou para a editora norte-americana DC Comics, em seguida voltando para a Grã-Bretanha e a editora literária Jonathan Cape”.
Louise Michel
Foi pela Jonathan Cape que Talbot publicou a fase mais contemporânea e também mais interessante de sua carreira, sempre em parceria com Mary M. Talbot. Como pesquisadora, o trabalho dela é focado em linguagem e gênero. Aí veio a investida recente em quadrinhos.
Dotter of Her Father’s Eyes é o trabalho mais pessoal da dupla. O livro contrapõe a história da relação de Mary com o pai dela, James S. Atherton, especialista na obra de James Joyce, com a relação de Joyce com sua filha, Lucia Joyce. Já Sally Heathcote: Suffragette ainda conta com os desenhos da quadrinista Kate Charlesworth para narrar a história do movimento sufragista britânico por meio de uma sufragista fictícia.
Aí veio A Virgem Vermelha. A terceira parceria do casal é uma biografia da educadora, poetisa, oradora, revolucionária e anarcofeminista francesa Louise Michel (1830-1905), conhecida pelo apelido que dá título à obra e uma das grandes lideranças da Comuna de Paris.
Durante os dois meses da Comuna, entre março e maio de 1871, a capital francesa foi governada por revolucionários pregando um estado laico, o fim do trabalho infantil, igualdade entre os sexos, educação gratuita, legalização de sindicatos, redução de jornadas de trabalhos e a ocupação de moradias vazias, entre outras coisas. Louise Michel foi figura central dessa história.
A Virgem Vermelha chegou às livrarias brasileiras quase simultaneamente ao anúncio da inclusão de Bryan Talbot no Will Eisner Comic Awards Hall of Fame, em cerimônia marcada para o próximo mês de julho, durante o anúncio dos vencedores do Prêmio Eisner de 2024, na convenção de cultura pop San Diego Comic Con.
O álbum tem como ponto de partida uma conversa entre a escritora feminista norte-americana Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) e uma das pupilas de Louise Michel durante o dia do funeral da revolucionária em Paris. Em visita à Europa para uma série de palestras, Gilman rememora um breve encontro com Michel em Londres alguns anos antes, celebrando a paixão compartilhada por elas por ficção utópica, e pede para sua interlocutora informá-la sobre os percursos tortuosos da colega recém-falecida.
Em meio a várias idas e vindas, o livro narra as origens e a formação de Louise Michel, os preparativos dela e de seus colegas para a tomada de poder em 1870, suas atividades durante os dois meses do governo proletário, sua prisão, seus sete anos de exílio na Nova Caledônia e seu retorno triunfal à França.
Quadrinhos britânicos
A Virgem Vermelha é didática em relação à história de Louise Michel. É clara ao expor a importância e as ideias revolucionárias da personagem e narrar uma jornada singular e emocionante de uma figura histórica protagonista de uma das tomadas de poder mais célebres do século 19. A arte de Bryan Talbot potencializa o roteiro de Mary M. Talbot ao contrapor painéis grandiosos retratando as muitas vivências épicas (e trágicas) de Michel com páginas com vários quadros de personagens conversando sobre os feitos da protagonista.
O álbum fecha com duas páginas de referências bibliográficas e outras 14 com vários comentários de Mary M. Talbot sobre os ocorridos retratados na HQ.
É significativo que A Virgem Vermelha seja o primeiro título de Bryan e Mary M. Talbot lançado em português. Trata-se de um álbum celebrando uma figura histórica real. Uma obra política, como os mais célebres dos quadrinhos britânicos, protagonizada por uma anarquista com ideias vanguardistas mesmo para o nosso presente. E com a arte de Talbot em seu melhor momento.
Os curadores Paul Gravett e John Harris Dunning celebraram na exposição Comics Unmasked “quadrinhos [britânicos] que questionam convenções, desafiam a aceitabilidade, provocam debates e às vezes beiram a controvérsia”. Originalmente lançado dois anos depois do evento na Biblioteca Britânica, A Virgem Vermelha é um ótimo exemplar do que essa possível “escola” de quadrinhos britânicos tem a oferecer.
Leia a última coluna de Ramon Vitral: Um papo com Ben Passmore.
Oi. Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista, edito o blog Vitralizado, sou autor do livro Vitralizado – HQs e o Mundo (MMarte), e colunista no blog da Veneta. Minha proposta por aqui é garimpar o catálogo da editora, títulos antigos e lançamentos, entrevistar autores, analisar algumas obras, refletir sobre arte e a nossa realidade. Volto em 15 dias. Até!
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