JT Waldman: “Violência e esperança estão enraizadas nesta terra”

*Por Ramon Vitral

JT Waldman fala sobre Harvey Pekar, Não é a Israel que Meus Pais Prometeram e o ‘ciclo interminável de violência’ no Oriente Médio

Os quadrinhos de Harvey Pekar (1939-2010) não eram acessíveis para o ilustrador e quadrinista JT Waldman durante a infância, na Filadélfia. Ele não os via na farmácia onde costumava comprar revistas e nem na loja de HQs de um shopping local. Ele só ouviu falar pela primeira vez sobre o autor ao ver o pôster de Anti-herói Americano (2003), filme de Sheri Berman e Robert Pulcini com Paul Giamatti no papel de Pekar – que também dá as caras como ele mesmo na produção.

“Fui apresentado ao personagem antes do homem”, me conta Waldman, parceiro de Pekar em Não é a Israel que Meus Pais Prometeram, recém-publicada pela Veneta, com tradução de Cris Siqueira.

O ilustrador assume ter entrado em contato com a obra de Pekar tardiamente, com a leitura de The Quiter, lançado em 2005, com desenhos de Dean Haspiel. Eles se conheceram na edição daquele mesmo ano da Small Press Expo (SPX), tradicional convenção de quadrinhos na cidade de Rockville, no estado de Maryland. Waldman deu a ele uma cópia de Megillat Esther, sua adaptação em quadrinhos para o Livro de Ester, um dos textos do Velho Testamento.

“Saí maravilhado e contente por saber que ele tinha um exemplar do meu trabalho. Achei que acabaria aí”, lembra o artista sobre sua primeira interação com o colega de profissão.

Tio rabugento

Harvey Pekar – Wikipédia, a enciclopédia livreNão é a Israel que Meus Pais Prometeram ganha edição brasileira em momento apropriado. Em outubro do ano passado, após ataques do Hamas ao território israelense, o Estado judeu iniciou uma ofensiva militar contra o território palestino que fez mais de 30 mil vítimas fatais e quase 76 mil feridos, segundo estimativas do início de abril da agência de notícias Reuters. Do lado israelense, foram mais de mil civis e mais de 350 militares mortos no 7 de outubro.

A parceria de Pekar e JT Waldman olha para trás, para o momento fundador do conflito. Ela narra a criação do Estado israelense e as origens dos disputas no Oriente Médio, além de expor as decepções dos dois artistas judeus em relação aos rumos de Israel.

Harvey Pekar morreu em 2010, aos 70 anos, vítima de uma overdose de antidepressivos às vésperas do início do seu terceiro tratamento contra o câncer. Na época, Waldman já estava ilustrando a versão final do roteiro entregue a ele por seu parceiro.

“Topei este projeto para trabalhar com Harvey”, diz Waldman sobre seu envolvimento no álbum. “Finalmente encontrei um colaborador e um mentor nos quadrinhos. Ele era o tio que não me ridicularizava por amar quadrinhos, mas me respeitava exatamente por causa disso. Ele foi muito gentil e encorajador comigo. A imagem rabugenta que ele projetou para o mundo não combina com a minha experiência com aquele homem. E então um dia ele se foi”.

Senso de identidade

Tenho Harvey Pekar como o grande representante dos quadrinhos underground norte-americanos dos anos 1970. Seu amigo e parceiro Robert Crumb talvez seja o autor mais conhecido dessa mesma cena. Talvez os dois se equivalham no fim das contas. Sem saber desenhar, Pekar ostentou em seus textos para revista American Splendor uma personalidade tão grandiosa e um discurso tão singular como o traço de Crumb.

“Sempre fui fascinado por seu senso de identidade”, afirma Waldman sobre aquele que considera o maior mérito de seu amigo. “Ele simplesmente sabia quem ele era, com pura convicção, e passou essa confiança para mim. Sempre que eu tinha uma dúvida sobre um rascunho ou a direção do layout do livro ele dizia ‘estou com você cara, em 110% do caminho. Basta ser você!’. Quero cultivar em mim o mesmo senso de identidade inabalável de Harvey”.

 

Mídias mistas

Pekar e Waldman trabalharam juntos pela primeira vez em 2007, em um ensaio ilustrado de quatro páginas sobre o papel do povo judeu nos quadrinhos norte-americanos no século 20. A obra foi publicada no livro From Krakow to Kripton: Jews and Comic Books (Da Krakóvia para Krypton: Judeus e Quadrinhos, em tradução livre), livro de Arie Kaplan.

A produção dessa primeira parceria durou seis semanas. O roteirista enviou um manuscrito com o texto, o ilustrador o transformou em uma sequência de seis páginas ilustradas. Eles trocaram ideias e artes por correio e telefone. Seis meses depois, Pekar ligou para Waldman dizendo ter fechado contrato para um projeto que seria “especialmente adequado” para ele.

Waldman conta: “Me senti ganhando na loteria. Ainda tenho as mensagens de voz que ele me deixou. O roteiro passou por três grandes revisões antes de se tornar o que foi publicado em 2012”.

Não é a Israel que Meus Pais Prometeram gira em torno das impressões de Pekar sobre o Estado israelense, mas também é didático sobre a diáspora judaica. O livro intercala conversas do roteirista com seu coautor em um sebo e uma biblioteca de Cleveland, com lembranças do quadrinista sobre sua infância e narrações sobre as muitas idas e vindas dos judeus ao longo da história. Nas passagens históricas, Waldman ostenta toda a bagagem estética acumulada por ele em sua formação em história da arte e semiótica pela Universidade do Michigan.

O ilustrador reproduz murais mesopotâmicos, mosaicos gregos, caligrafia islâmica, arte bizantina, modernismo soviético e outras estéticas para expor as várias pesquisas feitas por ele e Pekar em seus empenhos para narrar a história do povo judeu.

Sobre toda essa diversidade visual, o ilustrador me disse: “Estudei história da arte na universidade, então esse aspecto foi provavelmente o mais fácil e divertido para mim, em termos da produção do livro. Eu adoro mídias mistas, então poder brincar com estéticas diferentes evitou que eu ficasse entediado. Também precisei fazer a pesquisa visual, o que é metade da diversão para mim. Eu amo bibliotecas. O Harvey também amava”.

Amigos sagrados

Já a parte difícil para Waldman foi finalizar o livro sem o suporte de Pekar. O quadrinista deixou o roteiro do livro finalizado, mas o ilustrador ainda trabalhou na obra por mais dois anos após a morte de seu colega. Seu principal suporte passou a ser Joyce Brabner, viúva de Pekar. Ela assina com o desenhista o epílogo de Não é a Israel que Meus Pais Prometeram.

“No Judaísmo temos uma tradição chamada Chevra Kadisha”, me conta JT Waldman. “São os ‘amigos sagrados’ que ficam com um corpo 24 horas por dia, sete dias por semana, depois da morte, antes do enterro. De 2010 a 2012, quando o livro foi lançado, tive que desenhar meu colaborador morto, diariamente. Joyce (viúva de Pekar) e eu criamos um relacionamento enquanto trabalhávamos juntos no epílogo. Então eu fui um apoio para o luto dela. Pensar nisso tudo me deixa triste. Tive que compartimentar muitos aspectos do livro. O seu significado pessoal e a sua recepção/interpretação pública são para mim universos à parte”.

Ele também cogita sobre os significados do livro para Pekar: “Ele estava trabalhando em vários projetos, incluindo este livro, quando morreu. Só posso presumir que ele estava ciente de sua mortalidade e estava focado em seu legado… Nas histórias e ideias que ele se sentiu mais compelido a contar antes de partir”.

Como Brabner lembra no posfácio, Pekar deve ser celebrado por “quadrinhos sobre a vida real”. Li várias HQs de Pekar, todas reveladoras de diferentes formas sobre sua personalidade, mas sua parceria com Waldman talvez seja a mais sugestiva sobre sua infância e sua família. O livro mostra o impacto dos pais do autor, imigrantes judeus, em sua visão sobre o conflito árabe-israelense e sua perda de fé em Israel.

 

Ciclo interminável

Acho que Pekar consta no imaginário popular como descrito por Waldman, um rabugento. Apesar do humor refinado, suas reclamações constantes também contribuíram para que eu pensasse nele como um indivíduo particularmente pessimista. Não é a Israel que Meus Pais Prometeram me surpreendeu ao mostrar o autor não exatamente otimista, mas esperançoso ao pregar contra o “ciclo interminável de violência” em curso no Oriente Médio e a hostilidade do Estado israelense.

“Os israelenses não estão deixando os palestinos viver sua vida”, afirma Pekar em um trecho do livro. “Eles administram as coisas na Cisjordânia, decidem unilateralmente, como no caso daquele muro que construíram. Eles não deixam os palestinos em paz. Então se acham que esse é o caminho, separar as pessoas à força, continuaremos a ter problemas, problemas muito sérios”. 

Ele encerra sua reflexão dizendo: “Olha, foram cometidas atrocidades dos dois lados. Então devemos acabar com isso. É natural pensar ‘e se eles fizerem isso de novo, se fizerem aquilo mais uma vez?’. Mas não dá, se pensar assim você fica paralizado”. 

Quatorze anos após a morte de Pekar, Waldman faz coro ao amigo: “Precisamos de algo criativo, não destrutivo. É tão fácil se sentir desesperançoso e simplesmente jogar as mãos para o alto e desistir. Mas uma coisa que trabalhar neste livro com Harvey reafirmou para mim é que a violência e a esperança estão enraizadas nessa terra e já estão por aí há muito tempo. Deveríamos nos comprometer com as crianças que tentam sobreviver em Israel e na Palestina, em um esforço por algo diferente”.

 

 

 

Oi. Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista, edito o blog Vitralizado, sou autor do livro Vitralizado – HQs e o Mundo (MMarte), e colunista no blog da Veneta. Minha proposta por aqui é garimpar o catálogo da editora, títulos antigos e lançamentos, entrevistar autores, analisar algumas obras, refletir sobre arte e a nossa realidade. Volto em 15 dias. Até!

 

 

 

 

 

 

Leia a última coluna de Ramon Vitral: Bryan Talbot, o David Bowie dos quadrinhos

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