FEBRE, RAIO E PNEUMÁTICOS

Tungstênio, clássico de Marcello Quintanilha, fez 10 anos em 2024.  Neste texto, o autor fala sobre o processo de criação do quadrinho, sua relação com Salvador, onde acontece a história, e como o livro virou filme

*Por Marcello Quintanilha 

Favo de mel

Na primavera de 2003, Roberto Ribeiro e Emanuele Landi, editores da Casa 21 e pioneiros na organização de festivais de HQs no Brasil, me convidaram a passar duas semanas na cidade de Salvador, documentando-me para a elaboração do terceiro volume da série de livros que ambos haviam idealizado, na qual quadrinistas retratariam as metrópoles brasileiras. Salvador sempre foi inspiração, graças à literatura, à música ou às telenovelas, e estar pessoalmente na cidade foi como encontrar-me comigo mesmo, como saldar uma dívida antiga. Um sem fim de fotos e entrevistas serviram de base para a realização do livro quando retornei à minha prancheta em Barcelona.

Como parte do ofício, adquiri o hábito de ouvir a rádio local via internet, de onde, certo dia, o locutor transmitiu a fugaz notícia, mais ou menos assim: “Dois homens foram surpreendidos por um policial à paisana enquanto pescavam com bombas, rapaz! Ali, nos pés do Forte Monte Serrat…”.

Apesar da escassez de mais informações, e antes mesmo que eu percebesse, já havia começado a criar um enredo em torno da ocorrência.

Salvador chegou às livrarias em 2005, mas a viagem marcara minha vida para sempre.

Compulsão e mais compulsão

Nos anos seguintes, além da série Sept balles pour Oxford, em colaboração com Jorge Zentner e Montecarlo (Le Lombard, 2003 – 12), e da quadrinização do romance O ateneu (Ática, 2012), de Raul Pompeia, estive ocupado com Sábado dos Meus Amores (Conrad, 2009) e Almas Públicas (Conrad, 2011), duas coletâneas de histórias curtas, algumas das quais oriundas da minha experiência por terras baianas, republicadas no volume integral Alimenta estes Olhos (Veneta, 2022).

Asbestos

Quando desenvolvi a técnica mediante a qual meu trabalho se tornou mais conhecido no começo da década de 1990, combinando guache e grafite, tinha a intenção de me reconectar com o grafismo típico das estampas de imprensa do século XIX — caracterizadas pelas hachuras próprias das ilustrações a lápis e carvão, que nas gazetas da época eram reproduzidas a partir de fontes litográficas — e sua articulação da locução popular, que tiveram no ítalo-brasileiro Ângelo Agostini e no português Rafael Bordalo Pinheiro dois de seus maiores expoentes.

Entre o ocaso do império e a implementação da república, as obras de Agostini e Bordalo apresentavam uma abordagem costumista e satírica, mas com sólidos critérios realistas, enlaçada ao teatro de revista — a relação entre quadrinhos e teatro nesses tempos infantes é muito mais estreita do que se pensa; não por acaso, o tradicional plano médio fixo que sistematiza o deslocamento lateral da ação quadro a quadro, corresponde à visão que um espectador sentado na platéia tem do palco teatral.

Renegar o nanquim como instrumento fundamental da arte-final foi, portanto, o gesto reivindicativo de uma feição pictórica negligenciada pela fatura de quadrinhos no Brasil ao longo do século XX, ou por outra, o impulso para uma re-interpretação do entorno tangível que deixasse de lado o protótipo anglo-saxão, popularizado entre nós no marco da II Guerra, devido à penetração cada vez mais organizada de uma doutrina que tinha os Estados Unidos como modelo e que se configurou até os anos 1990 como viés quase exclusivo na oferta de quadrinhos que abarcassem as diversas gamas do realismo.

Essa doutrinação acabou por legitimar as HQs tão somente enquanto produto comercial, promovendo a renúncia à construção de um coeficiente iconográfico natural e o solapamento do registro fonético mais amplo do português por uma sintaxe padronizada — fruto do regime ininterrupto de traduções —, impossibilitando-as alcançar os estândares de codificação do ambiente brasileiro que a literatura, as artes cênicas e a música alcançaram, além de acarretar o esvaziamento de um parâmetro autóctone que nutrisse o pensamento acadêmico.

Fibra de carbono

A sujeição a esse projeto político, no entanto, deu origem a uma verdadeira tradição de revistas populares, formadoras de gerações de artistas; ora transpondo ipsis litteris para São Paulo e Rio de Janeiro os maneirismos da ficção policial novaiorquina nos anos 1930 – 40, ora emulando despudoradamente a linha de terror da EC Comics, ora ingressando na Bruceploitation dos anos 1970 ou ainda abrindo uma válvula de escape ao desejo reprimido durante anos de chumbo com o gênero erótico; da qual tampouco pretendo abrir mão.

Santo Antônio

Em 2011, os telefones fixos emitiam seus últimos tinidos e foi através de um deles que Josep Maria Berenguer me contactou. O lendário fundador da editora barcelonesa La Cúpula e editor da revista El Víbora lera Sábado dos meus amores — que lhe chegara às mãos graças a Rogério de Campos, meu editor no Brasil — e me perguntou se eu não teria interesse em apresentar um projeto para seu selo editorial. Naquela época, a idéia do que seria Tungstênio estava relativamente avançada e foi exatamente o que lhe apresentei, ainda sob o título provisório de “O que resta”,
trama que se desenvolveu em redor daquela notícia radiofônica ouvida em 2003.

Assinamos o contrato imediatamente.

Chá de querosene

Tungstênio se apoia em meia-dúzia de personagens, mas sua gênese não foi a de uma narrativa plural. Inicialmente, tanto Seu Ney quanto Caju não eram mais que figuras de ligação entre o casal protagonista, Richard e Keira, e a intriga. Porém, me vejo constantemente refém dos personagens e o carisma de ambos exigiu uma readequação do roteiro capaz de absorvê-los também como motores da história.

As motivações de Caju, a vingança por um lado e a tentativa de preservar o amor materno por outro, tornaram-seus traços cada vez mais sedutores, a ponto de fazê-lo competir com Richard para ser o galã do epílogo. Seu Ney, inadaptado, intransigente e iracundo, ascendeu a representante de parcela importante de brasileiros que se sentem rejeitados pela modernidade, órfãos de um mundo que acreditam não mais existir, atomizados numa sociedade em acelerado processo de mudanças e cujas referências morais são colocadas em xeque a todo momento. Indivíduos que não identificam a democracia como fator que os tenha beneficiado, ciosos de uma alternativa que obrigue o mundo a voltar rapidamente a padrões que lhes sejam mais familiares, instrumentalizados como alicerce de um programa eleitoral que por muito pouco não atirou Pindorama no colo do fascismo aberto em anos mais recentes.

Keira continua sendo uma de minhas personagens mais complexas. Tudo o que sabemos sobre sua vida familiar nos chega do ponto de vista que ela mesma nos fornece, através de um narrador que é ninguém e todos ao mesmo tempo. Mas também sabemos, com alguma precisão, que ela mente ou mentiu ocasionalmente para justificar determinadas atitudes no terreno conjugal, o que não nos coloca em condições de poder afirmar que tudo o que narra seja o reflexo máximo da verdade.

Richard é tão impulsivo quanto pode ser um policial consciente de que não conta com um dispositivo legal que garanta o melhor cumprimento das diretrizes jurídicas, sentimento que por si só faz subir sem freio a tensão.

Liece e Poró, vítimas do menú de crenças oferecido pelo neoliberalismo, empurrados para a esfera da economia informal e, logo, para a marginalidade, põem de manifesto as lacunas de uma estrutura sistêmica incapaz de estender à plenitude da coletividade os quesitos mínimos da cidadania.

Todos são mostrados sem filtro, sem qualquer tipo de julgamento, igualmente abraçados em suas potencialidades e debilidades, operando descalços para melhor metaforizar nossa fragilidade frente à urbanização desordenada — Richard, braço coercitivo do Estado, desce a nosso mesmo patamar ao retirar os chinelos antes de empreender carreira à beira d’água —, todos agindo dentro das regras que lhes são impostas pelo tungstênio do cotidiano, usando suas armas particulares para romper esse metal, dobrá-lo, atravessá-lo, superá-lo.

Hachuraploitation

Ao converter digitalmente o grafite de plasticidade litográfica ao preto 100%, apoiado em uma cama orgânica de cinza quente e frio, Tungstênio procura recuperar por outros caminhos a tradição dos quadrinhos populares brasileiros de corte realista para afirmar nela o paradigma de Agostini e cia..

Lambe-lambe

Estar em Salvador foi também crucial para o estabelecimento da prosódia que caracteriza o relato, a ponto de permitir que os personagens criem seus próprios maneirismos, suas próprias formas de se comunicar e atuar, superando a perspectiva do registro puro e simples de usos e costumes regionalistas, afiançando fé desabrida que deposito nos personagens como entes de razão.

Obscenidade

No conto “Obsessão”, de A vida como ela é, Nelson Rodrigues narra:

“Uma tarde, toda a vizinhança veio para a janela, Arlete e Sandoval passeavam na calçada de braço. Começaram imediatamente as blagues alegóricas: ‘Eu quero um doce, hein, Arlete!’. Os namorados tinham na ocasião dezessete anos…”

A frase “Eu quero um doce, hein, Arlete!”, proferida seguramente por alguma das vizinhas que acorreram à janela para deleitar-se com a visão do casal enamorado, faz alusão a um hábito do Brasil patriarcal, que consistia em fazer chegar um doce, um pedaço de bolo ou um bibelô, às mãos de parentes e amigos que não houvessem podido comparecer a determinada cerimônia, um aniversário, um casamento, etc., fortalecendo, assim, vínculos comunitários.

O slogan era bastante usado como insinuação ou gracejo (sem obrigatoriamente requerer o cumprimento da liturgia), sugerindo um possível relacionamento amoroso entre duas pessoas; passível, portanto, de conduzir a uma futura oficialização dos laços que consistisse em confraternização regada aos célebres docinhos brasileiros e pequenas filigranas artesanais, habilitando o autor da frase como candidato a receber uma dessas lembrancinhas caso não acudisse à celebração.

Sua tradução para o inglês: I wanna a candy; para o espanhol: quiero un dulce; ou para o francês: je veux un bonbon, trás implícita o mesmo pano de fundo histórico?

Dificilmente.

Baião

No caso dos quadrinhos, além de dominar mecanismos que desvendem signos verbais, o tradutor é chamado a desenvolver sua competência imagética, no que se refere à mímica, à linguagem corporal e vestuário dos personagens, culturalmente específicos.

A análise vernacular não é simples quando não se dispõe de um arcabouço cultural tão universalizado quanto o anglo-saxão, mas as intermináveis reuniões com os responsáveis pela adaptação das minhas obras para outras línguas, contextualizando cenas inteiras, página a página, quadro a quadro, balão a balão, têm sido uma experiência tremendamente enriquecedora — gostaria de poder dizer que não só para mim.

 

’S wonderful

Tungstênio veio à lume em 2014. Muito tarde. Berenguer não chegou a vê-lo impresso. O editor catalão nos deixou cedo demais…

Um beijo puro na catedral do amor

Antes do final daquele ano, Heitor Dhalia, diretor de O cheiro do ralo e Serra Pelada, me mandou uma mensagem, já agora pela via menos romântica das redes sociais. Estava entusiasmado com o álbum e queria levá-lo ao cinema o mais rápido possível. Nossa conexão foi instantânea e comecei a trabalhar no roteiro da adaptação em seguida, acompanhado de Marçal Aquino e Fernando Bonassi.

Ao contrário do que costuma acontecer nestes casos, tudo relacionado com Tungstênio – o filme foi extremamente rápido, desde a batalha por financiamento, passando pelo casting e a procura por locações. O modo como as pessoas envolvidas no projeto se dedicaram a ele me deu indícios de que tudo poderia chegar a bom porto e o fato de obter licença para que o filme fosse rodado exatamente no mesmo local onde se passa a ação da história em quadrinhos — “Ali, nos pés do Forte Monte Serrat…” — acabou coroando essa sensação.

O primeiro grito de “Ação!” foi ouvido apenas dois anos após a publicação do livro.

É fascinante observar o exercício dos atores e perceber como são capazes encontrar elementos em sua própria mitologia pessoal para dar vida a personagens concebidos para existirem apenas no papel.

E não, não há um único frame do filme que me pareça inapropriado.

Deus abençoe a Auguste e Louis.

Os crimes do corpo

Dez anos depois, Tungstênio permanece em catálogo em todos os países nos quais foi publicado.

Os prêmios e indicações que o álbum conquistou mundo afora, parecem demonstrar sua capacidade para cativar leitores que não têm, e nem têm porque ter, nenhuma familiaridade com as vicissitudes que abundam no nosso torrão tropical, talvez por se identificarem com um sexteto cuja validação como personagens escancara sua condição de seres humanos, e todos nós, globalmente e sem exceção, compartilhamos a mesma precariedade desta condição.

Marcello Quintanilha
Barcelona, 2024 

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