Davide Reviati: “Os massacres, as injustiças e os abusos só nos afetam se nos convém”
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Autor de Cuspa Três Vezes, Davide Reviati conversa com a Veneta sobre novo livro
Por Seham Furlan
Davide Reviati começou a desenhar ainda pequeno, como costumam fazer as crianças. Diferentemente da maioria, nunca mais parou. Nasceu na província de Ravena, localizada na Emília-Romanha, famosa por abrigar grandes fábricas automobilísticas. É nessa mesma região que se passa a história de Cuspa Três Vezes. O subúrbio rural italiano transforma-se no cenário da amizade entre Grisù, Catango e Guido, adolescentes que crescem juntos e, sem muita ambição, estudam eletrotécnica — assim como Davide.
A história dos três jovens entrelaça-se ao convívio de uma família cigana, discriminada pelos moradores da pequena cidade. A quietude do lugar se desfaz quando gajes e ciganos se esbarram, fazendo ecoar uma faceta pouco conhecida da história: o período de perseguição ao povo Roma pelo regime fascista italiano.
Em entrevista à Veneta, Davide Reviati contou sobre o começo de sua relação com os quadrinhos, suas influências enquanto autor e o porquê de trazer a questão cigana para os quadrinhos.
Veneta: Na história em quadrinhos, os personagens falam de cinema e de televisão. Mas não de quadrinhos, como foi o começo da sua história com os quadrinhos?
Davide Reviati: Comecei a desenhar muito cedo, como todas as crianças, depois simplesmente nunca mais parei. Meus pais, por outro lado, pararam de me comprar cadernos, porque eu os enchia muito rápido, fazia desenhos em sequência, vaqueiros a cavalo, jogadores de futebol, cenas de caça de dinossauros. Como leitor, lembro-me dos meus primeiros amores: Sturmtruppen, de Bonvi, Cocco Bill, de Jacovitti, Corto Maltese, de Pratt, que não compreendia, mas que me fascinavam loucamente. Descobri graças à minha mãe, na época ela era cabeleireira em casa. Folheando uma das revistas femininas que guardava para as clientes, dei de cara com uma tira de Corto. Não sei o que ela fazia em uma revista como tal, mas não a esqueci mais.
Mesmo no Istituto Tecnico Industriale, seção de electrotécnica, continuei a encher cadernos de desenhos. Durante as aulas, lia as revistas de quadrinhos que escondia debaixo da carteira, tanto que, no final, demorei mais uns anos a conseguir o diploma de mestre eletricista. Hoje, tenho dificuldade em trocar uma lâmpada, mas aquele gosto quase erótico, aquela sensação íntima de liberdade que eu sentia quando criança ao desenhar, ainda parece o mesmo.
V.: Quais suas principais influências enquanto artista?
D.R: Devia falar de muita coisa, do cotidiano e dos encontros mais fugazes, não consigo distinguir o indivíduo do artista. O bar, por exemplo – alguns bares em particular –, muitas das pessoas que lá conheci tiveram uma influência profunda na minha forma de olhar e de falar. “A vida é a arte do encontro”, já dizia Vinicius de Moraes.
Entre as influências diretas de escritores, diretores, designers ou de suas obras: para mim, as mais importantes são os autores com quem tenho a impressão de compartilhar questões éticas e não estéticas; contar histórias com desenhos é uma prática monástica, você passa muito tempo consigo mesmo e acaba que a solidão se torna uma desconexão com o resto da comunidade humana, com o sentimento comum do seu tempo. Encontrar alguém com quem sinto afinidades profundas, compartilho uma ideia, um certo ponto de vista sobre as coisas e sobre o mundo, me faz sentir menos só.
V.: Em Cuspa Três Vezes, acompanhamos a vida cotidiana de Grisù, Guido e Katango, três jovens em um subúrbio italiano. Como essa história se mistura à sua própria vida?
D. R.: De forma muito direta, como eles, cresci em um subúrbio da província italiana, não posso ignorar minhas vivências juvenis, muito da bagagem mitológica e poética que dá forma à minha inspiração está aí. Mas acredito que sempre falamos de nós, mesmo quando falamos de naves intergalácticas e alienígenas, a verdade de uma história não reside na verossimilhança, nem mesmo na precisão crônica dos fatos, muitas vezes é preciso manipular e trair memória, a verdade dos fatos quase nunca é a realidade. Para mim, contar histórias em quadrinhos é uma forma de chegar mais perto dessa verdade. É por isso que a história de Cuspa Três Vezes não é minha história, embora pareça para mim.
V.: A linha narrativa distancia-se da maneira clássica de se contar uma história. Como você menciona em uma entrevista, a estrutura narrativa em seu trabalho funciona como uma espécie de mosaico, no qual texto e desenho “dançam” em conjunto. Mas como funciona a produção? O que vem antes: o texto ou os desenhos?
D.R.: Às vezes um, às vezes o outro, às vezes tudo de uma vez. Quase nunca fui capaz de seguir um método ordenado ao escrever um livro, muitas vezes tudo começa a partir de uma frase ou uma palavra, ou, pelo contrário, de um desenho que chama uma frase. A gramática da linguagem do quadrinho reside na simbiose entre palavra e imagem, como dois dançarinos. Se eles dançam bem, você não percebe: parecem um só. Cada um tem sua própria maneira de encontrar essa alquimia, a minha é um pouco anárquica e acho difícil explicar melhor em detalhes.
Talvez esteja tudo na palavra: disponibilidade. Para mim, o acaso, o erro e o inesperado são tão preciosos quanto a estrutura de uma história. Acho que construir uma casa fechando as janelas imediatamente é como proibir as possibilidades, fechar os horizontes dentro dos limites estabelecidos à mesa dificilmente irá expô-lo a surpresas. E pode-se dizer que vou em busca de surpresas.
V.: Como surgiu seu interesse por abordar a questão cigana, como vemos, especialmente na reconstrução histórica de perseguições nazistas durante a Segunda Guerra? Na sua opinião, por que este assunto ainda é tão pouco conhecido?
D. R.: Talvez por não serem parte de um Estado. São pessoas que não estão protegidas por um governo, ninguém se importa em tomar partido. O nosso mundo é cínico: os massacres, as injustiças e os abusos só nos afetam se nos convém, caso contrário, são uma massa inútil.
Poucas pessoas sabem que, durante a Segunda Guerra Mundial na Itália, havia mais de duzentos campos de internamento e concentração, muitos dos quais destinados a ciganos. Descobri isso muito tarde. Para mim, falar dos Porrajmos – o genocídio dos ciganos – não era apenas uma forma de lidar com a memória, parecia-me um ato necessário torná-los uma questão de ficção.
Muitas vezes, falamos de memória coletiva, assim como, muitas vezes, o fazemos com demasiada retórica. Parece que a História é feita de fatos distantes no tempo, para os quais prestamos homenagem e lembramos como um dever moral. Tenho a impressão de que nos esquecemos de explicar como a história é parte de nós, como ela moldou nossa maneira de pensar, de agir, nossos modelos culturais, nosso ego. “A História somos nós”, De Gregori cantou, não só aquela com uma letra maiúscula, da qual carregamos um legado tão íntimo e profundo, que muitas vezes nem sequer o conhecemos. Estudar o passado é uma maneira de entender o presente. Nós o sabemos, mas esquecemos. Bem, era para me lembrar…
V.: Você acompanha os quadrinhos brasileiros? Há algum autor que goste ou leitura que tenha chamado sua atenção?
D. R.: Infelizmente, sou um profundo ignorante, não posso falar da cena de quadrinho brasileira, porque conheço muito pouco dela. Talvez a tradução de Cuspa Três Vezes seja uma oportunidade de descobrir grandes autores no catálogo da Veneta.
Arriscando parecer ingênuo, poderia falar de artistas como Vinicius de Moraes ou Maria Bethânia, que ainda ouço enquanto desenho e de quem de alguma forma me sinto muito próximo. Ou Zico Rivelino e Sócrates, que, como ex-jogador de categoria mais baixa sempre, me encantaram, como só grandes artistas. Mesmo ali, a surpresa e o inesperado eram o sal. O fato de, como italiano, terem me dado alguma amargura, é perdoável. O gênio e a beleza não têm pátria.