Vitorelo: “Trabalhar no livro enquanto o governo acontecia foi desesperador”
Confira a entrevista da designer e artista Vitorelo, autora do almanaque LGBTQ+ Kit Gay
Por Seham Furlan
Criado a partir de uma das mais polêmicas fake news impulsionadas no Brasil nos últimos tempos, o almanaque Kit Gay, de Kael Vitorelo, é um livro político, que visa reafirmar a resistência e demandas da comunidade LGBTQ+, traçando a história dessa comunidade e também as transformações urgentes pelas quais nossa comunicação precisa passar. O livro é destinado não apenas à comunidade LGBTQ+, mas a quem desejar tornar-se aliado em uma das principais lutas do país.
Em entrevista à Veneta, Vitorelo conta sobre o processo de elaboração do livro em meio aos desafios do governo presidencial de extrema-direita, em curso desde 2019. Fala também das adaptações necessárias para alcançar o formato desejado e da importância da linguagem neutra.
Veneta: O primeiro lançamento do Kit Gay, em formato de zine, foi em 2018, ano da eleição de Bolsonaro. Já o livro Kit Gay saiu em 2021, após quase três anos de governo bolsonarista. Qual foi o impacto que esse período teve na obra? De que forma a experiência desses três anos influenciou o seu trabalho e a nova versão do Kit Gay?
Vitorelo: O zine Kit Gay foi feito no contexto do “e se”: era um “e se Bolsonaro fosse presidente” que ficava cada vez mais real, mas que eu nunca poderia imaginar o tamanho dos desafios que um governo tão incompetente teria que dar conta. Ou melhor dizendo, um governo que tem sido extremamente competente na eliminação das populações mais vulneráveis e perseguição a educadores, professores e cientistas. Trabalhar no livro enquanto o governo acontecia foi, muitas vezes, desesperador. A cada semana, surgia uma nova questão a ser tratada, uma nova urgência. Apesar de o livro ter sido pensado para trazer assuntos diversos com leveza, foi um trabalho desgastante nesse sentido. A verdade é que viver, como um todo, foi desgastante nesses últimos anos. Mas é gratificante ver que o livro já tem feito a diferença para muitos leitores.
Como foi o processo de adaptação do zine para um livro?
O primeiro Kit Gay, em toda sua simplicidade de uma única folha de papel dobrada, foi muito mais intuitivo e espontâneo – até porque os zines geralmente funcionam na lógica do “faça você mesmo” e, dentro das minhas possibilidades, sempre fui eu quem imprimiu, dobrou, refilou e cortou meus zines menores, como, por exemplo, o Tomboy, o formato em que me baseei para fazer o zine do Kit Gay.
Fazer um livro é diferente em muitos sentidos: o alcance e abordagem do público, o livro enquanto objeto a ser manuseado e experimentado, além da questão mais óbvia de que, tratando-se de uma obra muito maior, o conteúdo acaba sendo bem mais extenso também. Aí vem os desdobramentos dos desdobramentos: então, com que público esse livro fala? Que conteúdo entra, considerando a vastidão de assuntos referentes à população LGBTQIA+? A única certeza que eu tinha era referente à linguagem, no sentido de abordagem visual. Sabia que a brincadeira do livro enquanto proposta, era a de que ele tivesse essa aparência de almanaque, de jogo educativo, justamente em alusão ao contexto pedagógico do verdadeiro “kit gay”, que vivia sendo lembrado pelo Bolsonaro.
O livro faz um resgate da história do movimento LGBTQIA+, como as passagens sobre o pajubá e sua importância durante a ditadura civil-militar brasileira e o registro sobre as origens das diferentes bandeiras. No entanto, essa memória é muitas vezes desconsiderada nos livros de história e didáticos, em geral. Como foi feita essa pesquisa? E qual é a importância, na sua opinião, de sintetizar essas informações históricas no Kit Gay?
Durante o levantamento da minha pesquisa, descobri que existe certa dissonância entre o que vem sendo discutido na academia e a história e cultura LGBT+ que se consegue levantar mais facilmente na internet. Na internet, que acredito ser uma das primeiras fontes de informação que LGBTs recorrem em suas autodescobertas, é muito comum cairmos em reportagens de grandes portais sobre datas comemorativas como o mês do orgulho, ou sobre personalidades que são LGBTs. Frequentemente, esses portais acabam apenas traduzindo reportagens e conceitos do norte global, sem que isso reflita necessariamente o contexto em que as populações LGBT+ daqui vivem.
Eu não estou atualmente dentro de um ambiente acadêmico formal, como a universidade ou algum grupo de pesquisa, mas integro alguns grupos de estudos e tenho participado de eventos e publicações quando posso. A partir disso, pude chegar em publicações, obras, autores e discussões que me permitiram ter uma outra visão de assuntos que são pertinentes não só às pessoas LGBT+, como à população como um todo. Acho importante que essa produção de conhecimento não fique num vácuo e, em muitos sentidos, eu acredito na linguagem dos quadrinhos e outras narrativas gráficas como uma ponte mais acessível para esse tipo de informação.
É bastante interessante, por exemplo, as perspectivas de um feminismo decolonial, o entendimento de transfeminismo e de pessoas transvestigêneres, além das vivências únicas de pessoas travestis para além das categorias tradicionais de gênero homem-mulher que existe na América Latina; tudo isso ao mesmo tempo em que absorvemos e questionamos o conhecimento que é produzido no norte global, porque nós também o vivenciamos por meio de influências culturais e políticas que podem contribuir com nossas discussões.
Há muita polêmica em torno da linguagem neutra. Para setores conservadores, ela desrespeita a norma culta. Mas uma série de pesquisadores argumentam que a linguagem é um organismo vivo, que precisa se adaptar às transformações da sociedade. O Governo Federal já se lançou na trincheira contra a linguagem neutra, proibindo o seu uso em projetos inscritos na Lei Rouanet, por exemplo. Na sua opinião, quais as consequências desse tipo de ação?
Comentei na resposta anterior sobre eventos acadêmicos dos quais tenho participado, um deles foi a Jornada de Estudos Contra-Normativos, do grupo de estudos DiverGente, coordenado pela Profa. Tessa Moura Lacerda, da Filosofia da USP. Apresentei um artigo na mesma sessão que a Profa. Marina Grilli, que apresentou seu trabalho sobre linguagem neutra como resistência à colonialidade linguística. O que achei interessante foi que, durante a discussão, eu disse exatamente isso: a linguagem é viva, dinâmica, não se pode esperar que ela seja limitada por regras ultrapassadas. E, para minha surpresa, a Profa. Marina discordou de mim. O que ela argumentou, e aqui estou parafraseando, é que ao afirmar que a linguagem é viva como um organismo, estamos também afirmando que ela é autônoma de nós, os falantes – mas isso não é verdade. A linguagem é deliberada e tem um potencial político enorme.
E, de fato, a linguagem neutra, também conhecida como neolinguagem ou linguagem inclusiva, é um esforço com um propósito definido, assim como as tentativas de impor uma norma culta são igualmente deliberadas, com suas intenções particulares de, no caso, reforçar um status quo. Então, quando o governo passa a proibir uma forma específica de linguagem, ele está institucionalizando a perseguição das pessoas que a utilizam e dificultando seu acesso a direitos básicos. No caso, o alvo é claro: pessoas LGBT+, ativistas, pesquisadores e, de forma mais ampla, qualquer um que não se alinhe à ideologia do governo.
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