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Meu problema com a ficção

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Em sua primeira coluna no blog da Veneta, Roger Franchini, fala sobre ficção e realidade na literatura policial

Por Roger Franchini *

Ilustração: Marcelo D’Salete (cena de Encruzilhada)

Depois de escrever alguns livros que romanceavam crimes brasileiros a partir da perspectiva dos investigadores de polícia, fui considerado pela imprensa um especialista no assunto de bandidagem, ao ponto de ser consultado, com uma estranha solenidade, para matérias jornalísticas que me cobravam números, identidades, rotinas dos criminosos, pesos e medidas que nunca imaginei necessários para o projeto a que me propus fazer: divertir o leitor recontando as mesmas histórias que adorava ouvir quando eu ainda era policial.

Eu compreendi a demanda da mídia e me levei a sério. Compenetrado, respondia às dúvidas dos repórteres unindo os dedos das mãos no ar, enquanto cruzava as pernas de maneira distinta, retesando as sobrancelhas para sair na tela com um aspecto tributável.

Não poderia culpá-los. Evidentemente, a pesquisa dos processos judiciais havia ajudado a dar credibilidade aos fatos narrados nas obras, da mesma forma que conversar com alguns dos envolvidos fortaleceu a concepção humana dos personagens.

(Acho que) O sarcasmo brotou sem maldade: havia uma transparência naquelas histórias que lançava dúvidas sobre a dimensão da verdade. Coincidências verossímeis, mas ao mesmo tempo impossíveis de serem negadas pelos atores que vivenciaram o crime. Afinal, afastar minha versão exigiria dos envolvidos a revelação de uma realidade distinta daquela descrita na sentença transitada em julgado. Apostei em algo que aprendi nos anos de inquéritos policiais: a melhor maneira de responsabilizar um sujeito é obrigá-lo a se defender de uma acusação ainda mais grave, mesmo que falsa, porém, capaz de condená-lo.

Sabemos, claro, que é obrigação do acusador comprovar a culpa e nunca do acusado mostrar que é inocente. Mas a prática não funciona assim, como deseja a melhor doutrina. Depois que ocorre o crime, a versão oficial do Estado estabelece uma ordem inquestionável, mas que ao longo do tempo pode ser abalada quando surgem versões críveis (não importa se comprováveis, mas se as forem, que bom!).

Finjo que não me importo com essas discussões literarescas, mas a verdade é que, se circulo com tanto prazer no limite entre a verdade e a mentira, é porque tenho problemas com a ficção. Vejo sofisticados autores ressaltarem os benefícios da fantasia sobre a nudez crua da verdade, contudo, quanto a mim, satisfaço-me com a mediocridade de recontar algo de que já conheço o motivo, as ações e suas consequências. E aqui não quero macular meu contentamento com o sentido pejorativo de mediocridade. Aposto em sua literalidade que muito bem traduz minha satisfação (ou não frustração) de não ser o vencedor, bem como meu esforço para não permitir enxovalhar minha reputação com algo inferior.

Minhas obras não parecem crônicas, nem mesmo o relato que deveria conter um boletim de ocorrência. Mesmo o livro Ponto Quarenta, nascido de minhas experiências diárias como investigador de polícia, acredito que está aquém do que poderia ser considerado ficção, mas muito além de fidedigno. Durante os rascunhos de alguma obra, minha imaginação é censurada por uma espécie de senso de responsabilidade com o fato, como se houvesse compromisso prévio com o real. E a partir dessa competição nasce uma narrativa convincentemente coerente.

É, antes de tudo, um ato político, sim. A partir da leitura de uma investigação banal é possível enxergar a luta dos policiais e bandidos para não serem soterrados pela burocracia do crime. Não vejo heróis incorruptíveis, vocacionados para a função, mas agentes de um sistema cruel que, para não morrerem, ajudam a perpetuá-lo. Tratar uma história de investigação criminal feita na realidade brasileira como mera fantasia é, no mínimo, desumano e, talvez só para mim, que fiz parte dessa engrenagem, é ser desleal. Mais ainda, é ignorar a histórica miséria que nos cerca e superproteger a classe média (o principal público desse mercado), como se fossem crianças indefesas ante os perigos do cotidiano.

Banco central

Um jornalista me telefonou para uma entrevista sobre um dos maiores (e bem feitos) crimes bancários do mundo: o furto ao Banco Central de Fortaleza. Durante a conversa, disse a ele (o rapaz sempre muito gentil, mesmo quando percebeu minha incapacidade de personificar o profundo conhecedor da matéria que julgava que eu fosse) que este crime só poderia ser contado por meio da ficção. Mas depois me arrependi (que novidade isso, foda-se). Deveria ter dito que o enredo pobre descrito no processo, apesar de plausível para a Justiça, não poderia ser reinventado à revelia da verdade por um cidadão qualquer para preencher buracos da história. Agir assim o faz dono de, apenas, uma versão: a dele, exclusivamente a dele.

Os silêncios daquela narrativa são a própria história. Quantos ladrões eram ao todo? Quem projetou a estrutura do túnel? Quantos milhões realmente foram subtraídos do cofre e no bolso de quem foi depositado cada centavo? Por que, afinal de contas, uma boa história precisa dessas respostas?

A ficção é pobre porque esconde o que temos de pior e mais belo.

*Roger Franchini é autor de Ponto Quarenta – A Polícia  Para Leigos

 

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