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Prefácio de A Voz do Fogo, por Neil Gaiman

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Por Neil Gaiman

Pode-se medir um círculo começando de qualquer ponto, disse Alan Moore citando Charles Fort, no início de sua exploração da sociedade vitoriana, Do Inferno. O círculo aqui é temporal e é geográfico. É um círculo feito de cães negros e fogueiras de novembro, de pés de cadáveres e cabeças decapitadas, de saudade e perda e desejo. É um círculo que vai levá-lo por vários quilômetros e 6 mil anos.

Estou sentado em uma sala na Holanda, em um anacrônico castelo vitoriano, escrevendo o prefácio para um livro chamado A Voz do Fogo, de Alan Moore. Não é a melhor introdução a este livro, claro. A melhor introdução é o capítulo final, escrito em novembro de 1995 por Alan Moore, em uma sala esfumaçada, na voz de Alan Moore, irônica, engraçada e esperta demais para nós. Escrita em uma sala cheia de livros empilhados que ele usou na sua pesquisa, escrita como o ato final de magia e fé.

Pode-se medir um círculo começando de qualquer ponto. Não de todos os pontos, obviamente. Um círculo, um lugar. Esta é a história de Northampton, afinal.

Se esta fosse uma narrativa linear, nós iríamos seguir Northampton, voz por voz, de cabeça em cabeça e de coração em coração, da parada no chiqueiro para um jovem estúpido, passando por Ham Town atéuma movimentada vila medieval e de volta ao agora. Mas a narrativa, como a cidade, só é linear se você quiser que seja. E se você espera receber um prêmio por chegar até o fim, você já perdeu. É um passeio de carrossel, não uma corrida, um tour mágico pela história, tão evolucionária quanto revolucionária, em que os únicos prêmios são formas e pessoas e vozes, cabeças decapitadas e pés mancos, cães negros e as chamas de novembro, que se repetem como os naipes de um insano baralho de tarô.

Quando o livro foi publicado, em 1996, causou menos impacto no mundo do que deveria: era apenas uma história que começava, sem nenhuma explicação, com a narrativa pessoal de um homem infantil e tolo, ao fim da Idade da Pedra. Sua mãe morreu, sua tribo nômade o abandou, ele enfrentará a maldade e os desmandos daqueles mais espertos que ele (e todo mundo é mais esperto que ele). E ele também irá descobrir o amor, aprender o que é uma mentira e descobrir o destino do porco no matadouro do Bruxo. Ele também vai contar sua história na narrativa mais idiossincrática desde Riddley Walker, de Russel Hoban (ou, talvez, desde a história “Pog”, do Monstro do Pântano de Alan Moore), com um vocabulário minúsculo, o tempo presente, e a incapacidade de distinguir sonhos de realidade. Não é o mais fácil dos pontos iniciais, embora seja um tour de force e apresente todos os elementos que vão retornar durante o livro. O shagfoal está lá, os gigantes cães negros que correm pelos sonhos e escuridão, o cabelo cortado da cabeça da mulher morta sob a ponte e o pé da mãe do garoto saindo de sua cova, e a fogueira final e comovente. É novembro, perto do dia que virá a ser conhecido como A Noite de Guy Fawkes, quando até hoje efígies são queimadas em fogueiras diante das crianças.

Uma das belezas deste livro está em observar um mestre contador de histórias assumir a voz dos mortos como se fosse dele: a garota psicopata sem nome que visita o Bruxo tatuado. Com seu nome roubado e seu bracelete de cobre, ela poderia estar se enredando em uma história de detetives da Era do Bronze. Sua aparição é mais uma queima em outra fogueira. Uma fogueira inesperada, cruel e apropriada. A garota é tão perigosa, e tão certa de sua inteligência e superioridade, quanto um caixeiro-viajante que vende roupas íntimas, que acenderá sua própria fogueira sacrificial na Noite de Guy Fawkes para seu carro e sua vida triste. Ele fala conosco na voz de um contrabandista espertalhão, mentindo para nós e para si mesmo, e por um momento nós temos um vislumbre de Moore como o Jim Thompson inglês, e o seu fim, como o fim de um dos personagens de Thompson, já sabemos desde o início.

Um investigador romano incumbido de averiguar uma rede de falsificação, com o cérebro e o corpo sendo devorados pelo envenenamento por chumbo – chumbo proveniente do revestimento dos aquedutos romanos (a palavra inglesa plumber, encanador, vem do latim para aquele que trabalha com chumbo) –, descobre que o chumbo está envenenando o império de uma outra forma. A efígie é a do imperador, estampada em uma moeda circular. O círculo será medido e pesado, e o peso não irá conferir.

Considere, enquanto você lê, que a história é uma boa história. A sugestão de Moore para o segredo dos templários pode não ser verdadeira (nada neste livro é verdade, não da maneira que você está pensando, mesmo que tenha acontecido), mas se encaixa nos fatos (nos dando outra cabeça decapitada, junto com a Igreja Templária de Northampton). Assim como a pobre cabeça de Frances Tresham nos entrega sua história junto com sua vida. As histórias são caixas que contêm mistérios – a maioria dos quais não foi resolvida, enquanto todas as soluções que recebemos abrem portas para problemas e dificuldades ainda maiores. Ou, posto de outro modo, A Voz do Fogo é de certa forma verdadeira, mesmo que suas verdades sejam ficcionais, históricas e mágicas. E, portanto, as explicações que se recebe são sempre parciais e insatisfatórias, e as histórias, como as histórias de nossa vida, inexplicáveis e incompletas.

É um prazer ler este livro – e relê-lo. Comece por onde quiser: o início e o fim são ambos bons lugares, mas um círculo começa em qualquer ponto, assim como uma fogueira. Não confie nas histórias, ou na cidade, ou mesmo no homem que conta as histórias. Confie apenas na voz do fogo.

Neil Gaiman

Castelo de Haar, 26 de abril de 2003

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