trabalho liberta?
Por Monique Prada *
(Ilustração: Marcello Quintanilha/Talco de Vidro)
Nem oito horas de uma manhã qualquer, Priscila me chama no Whatsapp. “Eu digo pro meu analista, eu não odeio o meu trabalho, eu odeio trabalhar”, e começamos a falar da vida, dos clientes, do clima infernal de Porto Alegre, como temos feito quase todos os dias
Mas lembrei dessa conversa enquanto tentava – e não conseguia – começar a escrever sobre minha nova vida como motorista de aplicativos. A questão sobre se este poderia de algum modo realmente ser considerado um trabalho empoderador, ou, no mínimo, um trabalho mais empoderador do que a prostituição, dava voltas na minha cabeça.
Rotina exaustiva, risco constante de acidentes, morte rondando, tudo isso somado às baixíssimas tarifas cobradas dos usuários versus a comissão cobrada pelos aplicativos me davam sempre aquela sensação de estar sendo cruelmente explorada num trabalho em que eu precisava investir muito mais tempo e dinheiro. A pressão das estrelinhas, a necessidade de sorrir constantemente para as pessoas passageiras, a importância de se vestir adequadamente para não provocar reclamações.
Priscila é uma das pessoas mais interessantes que eu conheço. Travesti e prostituta portoalegrense, dizer apenas isso é pouco sobre ela. Com pós-graduação na área da educação, é também uma artista plástica fantástica que aborda em sua obra as nossas vivências e rotinas enquanto putas, o comportamento dos clientes, a violência de gênero, o transfeminicídio. Volta e meia, ela me conta sobre algum cliente desavisado lhe perguntando por que não volta a estudar e abandona “essa vida” – nessas horas, fica em dúvida entre falar a verdade sobre a sua formação ou alimentar a fantasia do incauto freguês de salvar todas as meretrizes. Ou ao menos algumas, pelos poucos minutos de duração de um programa. Ah, a culpa cristã…
Mas a fantasia de “salvar” prostitutas é antiga e recorrente. Não é exclusividade nem dos clientes chatos nem das feministas ditas radicais, embora seja constante nesses dois grupos aparentemente tão distintos. Desde os primórdios, controlar os corpos e comportamentos das mulheres, e em especial dessas mulheres que rejeitam a submissão ao matrimônio e à falsa segurança do lar, tem sido um desafio. Mais do que salvá-las, é preciso punir-lhes os pecados. Angela Davis cita em seu livro Estarão as Prisões Obsoletas (Difel, 2018) que uma das prováveis origens da palavra “penitenciária” está em sua conexão com projetos elaborados na Inglaterra no final do século XVII para abrigar prostitutas “arrependidas” ou “penitentes”. A verdade é que desde sempre as prostitutas são perseguidas por questões morais, e a suposta necessidade de banir a prostituição da face da Terra está muito mais ligada à tentativa de promover uma desejada moralidade urbana, do que a combater a precariedade da vida e do trabalho das mulheres que a exercem.
É impossível para mim deixar de perceber a força dessa fantasia na sociedade contemporânea quando lembro dos aplausos fervorosos que recebi no primeiro debate em que passei a me apresentar como prostituta “em licença” e motorista de aplicativo. Aquilo me soou muito como “nossa, enfim a Monique tomou jeito, está exercendo um trabalho digno” ou “essa é uma mulher que venceu na vida”, isso quando tudo o que eu desejava chamando o assunto à mesa era falar sobre a importância da aposentadoria especial para trabalhadoras sexuais aos 25 anos de contribuição, proposta pelo ex-deputado Jean Wyllis no projeto de lei 4211\2012, o PL Gabriela Leite, que visa regulamentar a prostituição no Brasil. À época – cerca de um ano atrás – eu trabalhava com um grupo de quase cem mulheres, conectadas por Whatsapp e Life360 (um aplicativo de monitoramento por GPS) numa tentativa de garantir a segurança umas das outras. A maioria de nós fazia o turno da noite\madrugada, coisa que não muitas mulheres em minha cidade se atrevem a fazer.
Quando comecei a dirigir por aplicativos para amenizar as minhas crises de ansiedade, crises que me afastaram (ao menos por um tempo) do trabalho sexual, tudo me parecia muito bom ali. Ter todo o meu tempo ocupado era essencial. Trabalhar numa atividade dominada por homens me soava fascinante, ao mesmo tempo em que essas conexões entre mulheres trabalhadoras me pareciam muito feministas. O interessante é que são justamente essas as conexões que as leis sobre prostituição no Brasil nos proíbem de fazer: trabalhar juntas. Trabalhando com aplicativos de mobilidade urbana e conhecendo as estratégias que as pessoas que atuam na área usam para se conectar, o fato de as prostitutas serem obrigadas a atuar de modo isolado passou a soar ainda mais absurdo para mim. Obviamente estaríamos todas muito mais seguras se nos fosse permitido legalmente atuar em grupos, e sempre me pareceu que impedir isso tem exatamente a função de tornar a atividade ainda mais arriscada para as pessoas que a exercem – vários grupos de defesa dos direitos das trabalhadoras sexuais ao redor do mundo apontam isso, aliás.
Cabe lembrar que essa foi praticamente minha única experiência laboral para além do universo do trabalho sexual desde que abandonei meu trabalho mal remunerado num escritório de importação e exportação para me dedicar ao sexo pago. Até ali, eu podia intuir mas não afirmar com plena certeza: trabalho não empodera – ao menos o tipo de trabalho possível para mulheres da minha classe social, com o meu nível de formação.
Ainda que uma pequena parcela das pessoas que trabalham para aplicativos de mobilidade se considerem hoje empreendedoras independentes e bem sucedidas, a imensa maioria de nós entrou nessa atividade por absoluta necessidade financeira. A crise econômica que tem assolado o país nos últimos anos, o alto índice de desemprego e os baixos salários são os principais motivos pelos quais as pessoas arriscam suas vidas e sua saúde física e mental dirigindo por longos períodos para desconhecidos. Algumas de nós têm essa como única atividade, enquanto outras a exercem para complementar a renda.
Assim como as prostitutas, motoristas de aplicativos têm lutado arduamente por leis que garantam seu direito de trabalhar – e, em consequência, o direito de Uber e outras multinacionais explorarem de modo brutal sua força de trabalho. Diferente das prostitutas, não somos, motoristas, atacados por isso.
Meu romance com a Uber começou a acabar no final de 2018. As constantes viagens não me deixavam tempo livre para ganhar minimamente bem com a atividade, mas no fim das contas foi uma conversa com a minha mãe que me fez reavaliar a questão. Enquanto meu irmão me pedia para não trabalhar durante a madrugada por questões de segurança, minha mãe garantia a ele que eu tinha passado a vida exercendo atividade muito mais perigosa que essa. No entanto, não era assim que eu me sentia: sempre exerci a prostituição de modo a ter controle sobre tudo o que acontecia à minha volta, diferente do que eu estava vivendo com a Uber. No entanto, era um trabalho “certo”, toda a vez em que eu saía para dirigir por algumas horas sabia mais ou menos o quanto ganharia por isso, e que certamente ganharia – diferente da prostituição, onde não raro ficava dias sem atender ninguém.
Até que sofri minha primeira tentativa de assalto, às vésperas de viajar para um encontro de feministas em La Plata. Um carro corta a minha frente e, de dentro dele, rapidamente desce um rapaz e bate com uma arma no vidro do meu carro. Não fiquei pra ver o que queria: arranquei o carro rapidamente, deixando para trás aquilo que poderia ter ridiculamente encerrado minha carreira: “puta escritora morre baleada numa esquina qualquer enquanto dirigia por aplicativos para sobreviver”. Um final ridiculamente trágico e simplório. Não era pra mim.
Hoje, ainda dirijo por aplicativos quase todo o tempo em que estou em Porto Alegre, mas já renovei as minhas fotos e voltei a anunciar em sites de acompanhantes. Escrevo sempre que posso. E faço minhas as palavras da Priscila: eu não odeio o meu trabalho, eu odeio é trabalhar.
* Monique Prada é escritora, trabalhadora sexual, feminista e autora de Putafeminista
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