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Sujeira, fúria e vingança: o Manifesto Comunista em Quadrinhos

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Por Martin Rowson *

Publicado originalmente no jornal britânico The Guardian

Cartunista Martin Rowson conta por que Karl Marx teria adorado sua versão para história em quadrinhos, que leva a diversão de volta a essa excelente obra política

Karl Marx e eu somos velhos conhecidos. Como muitas crianças que cresceram nos anos 1960, eu era obcecado pela União Soviética e pelo que a tornava inatingivelmente diferente. Mais do que isso, meu pai de fato esteve lá para participar de simpósios científicos. Tenho uma lembrança vívida de, por volta dos seis anos, estar parado no nosso quintal, com meu pai me dizendo: “Como assim, você não sabe quem é Karl Marx?”. Respondi, um tanto choroso: “Mas eu sei quem é Lenin”.

Fiquei mais velho, mas a obsessão continuou. Quando tinha uns quinze anos, finalmente li o Manifesto Comunista, e ele fez todo sentido. Entendi instantaneamente a dialética, a fricção tectônica e inexorável de “toda a história até aqui”, a luta de classes e todas as questões da inevitabilidade da vitória final do oprimido sobre o opressor. Fiquei encantado não só com o alcance universal do manifesto e sua impressionante combinação de razão e romantismo, mas também com seu bom humor. Algumas partes são muito engraçadas.

Em pouco tempo, devorei Rumo à Estação Finlândia, de Edmund Wilson, visitei a União Soviética e, aos 19 anos, escrevi um romance, por sorte não publicado, que descrevia uma revolta marxista fictícia. Em meus tempos de estudante, me filiei ao Partido Comunista, mas minha carreira de militante durou mais ou menos uma semana. Depois que me formei, vendi uma série de quadrinhos para a revista New Statesman intitulada “Scenes from the Lives of the Great Socialists” [“Cenas da vida de grandes socialistas”] baseada em trocadilhos ridiculamente forçados usando as máximas definidoras do marxismo. Um exemplo típico trazia Friedrich Engels parado diante do vaso sanitário olhando para o mecanismo da descarga e dizendo: “Ei, Marx, tem dois bonitões aqui na privada”. Marx responde: “Claramente eles herdaram a cisterna!”

Quando esses quadrinhos foram lançados em livro em 1983, houve pedidos para que fossem banidos da Collets, a velha livraria esquerdista de Londres. Sempre segui aquela máxima do Orwell sobre toda piada ser uma pequena revolução, ainda que muita gente acredite que “nada disso seja motivo para fazer piada”.

Obviamente, como satirista profissional, eu discordo. E acho que Marx discordaria também. Muita gente que se digladia com a Teoria da Mais-Valia deveria relaxar e ler, por exemplo, os textos jornalísticos de Marx dos anos 1850 para o jornal New-York Tribune, que estão à altura de Simon Hoggart e, às vezes, até de Jonathan Swift, no tom hilário e mordaz.

Seja como for, Marx continuou comigo pelos trinta anos seguintes: ilustrei uns dois livros do marxista australiano Kevin Killane, e o próprio Karl Marx fez participações especiais nas adaptações para os quadrinhos que fiz de A Terra Inútil (The Waste Land, no original), de TS Eliot, e Tristram Shandy, de Laurence Sterne. Foi depois que este último livro foi relançado em 2010 pela SelfMadeHero que a editora me pediu para adaptar a maravilhosa biografia de Karl Marx feita por Francis Wheen em 1999.

Na verdade, sou um picareta e, assim como Marx, sou péssimo para lidar com prazos. Aos 29 anos, ele terminou às pressas o Manifesto Comunista durante um fim de semana em Bruxelas no fim de janeiro de 1848, depois de receber um ultimato da Liga Comunista em Londres, que tinha encomendado a obra no outono. É uma prática comum para mim fugir dos storyboards e ir criando conforme o trabalho avança. Mas, diante do livro de Wheen, decidi pagar meu filho para escrever o roteiro. Ele fez um trabalho excelente, mas me deixou sem nada para fazer além de desenhar seguindo suas instruções. Fiquei entediado. E me senti como se não fosse nada além de uma máquina. Aliás, fui alienado do trabalho de uma forma classicamente marxista e, seguindo a pura teoria de Marx, me rebelei. Depois de demorar sete meses para desenhar apenas cinco páginas de arte final, desisti e devolvi meu adiantamento.

 

Fiquei com essa questão mal resolvida com Marx, e de vez em quando surgiam imagens no fundo da minha mente sobre grandes placas geológicas de História se chocando contra enormes amontados de Dialética. Então a SelfMadeHero perguntou se eu não tinha vontade de transformar o Manifesto Comunista em quadrinhos por ocasião do 200º aniversário de Karl Marx. No mesmo instante a coisa toda me veio à mente. Imaginei claramente o manifesto como uma espécie de tsunami, composto por partes iguais de steampunk industrializado cheio de sangue e ferro, John Martin apocalíptico e uma fúria crescente que resulta num clímax ao fim da Seção 1: burguesia e proletariado, antes de irromper na praia da História e se tornar uma comédia de standup sem rodeios. Ele é todo temperado com piadas internas, acertos de contas pessoais e o tipo de sujeira rabelaisiana de que Marx teria gostado. Espero ter atingido meu objetivo.

Kenneth Baker, ex-secretário de Estado para Assuntos Internos do Partido Conservador do Reino Unido que, comigo (e com Steve Bell), faz parte do conselho do Museu dos Quadrinhos de Londres, insiste em me chamar de marxista-leninista linha dura. Eu não sou. Quando muito, sou uma espécie de William Morris anarquista: a favor da igualdade e do fim das hierarquias, para que todos possamos nos divertir. Despido do dogma doutrinário, que é como eu leio Marx também. A parte mais importante do Manifesto Comunista continua sendo sua análise de como os mecanismos amorais do capitalismo mercantilizam os seres humanos e os reduzem a máquinas de carne que existem unicamente para serem sugadas e tornarem os ricos ainda mais ricos. O que, para qualquer pessoa, não tem nada de divertido. E 170 anos depois que ele escreveu o Manifesto Comunista, quando, de acordo com os últimos registros, 43 indivíduos detêm a mesma riqueza que metade do restante da humanidade, acredito que Karl Marx ainda tenha muito a dizer, e espero tê-lo ajudado a fazer isso mais uma vez.

*Martin Rowson é autor da adaptação para os quadrinhos do Manifesto Comunista

Tradução de Alyne Azuma

Lançamento: Dia 30/03, às 16h

Tapera Taperá: Galeria Metrópole (av. São Luis, 187, 2. andar, República)

Debate com Jean Tible, Gilberto Maringoni e Rogério de Campos. Mediação: Leticia de Castro

 

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