Uma visita a Louise Michel
Em texto publicado no Le Socialiste em 1885, Paul Lafargue relata como foi seu encontro com Louise Michel na prisão de St. Lazare; naquele mesmo ano, o próprio Lafargue seria apriosinado.
Por Paul Lafargue
Em 1883, Paul Lafargue visitou Louise Michel na prisão de St. Lazare. O lugar fora, no século XVII, a prisão das “moças de família”: esposas, filhas e freiras rebeldes, indisciplinadas, “loucas”. Mas por lá passaram também muitos intelectuais homens, como Beaumarchais e o Marquês de Sade. A partir do início do século XIX, foi se tornando, cada vez mais, uma prisão para prostitutas e mulheres revolucionárias. Fernande d’Erlincourt, Félicie Gimet, Germaine Berton, Jeanne Humbert, Hélène Brion… a lista de anarquistas, sindicalistas e comunistas que estiveram ali é bem grande. Louise Michel foi mandada para lá depois de condenada a seis anos de prisão por liderar uma manifestação de trabalhadores desempregados em março de 1883.
Naquele mesmo ano, o próprio Paul Lafargue seria aprisionado, em Sainte-Pélagie. Também por seu ativismo revolucionário. Lafargue coloca Michel como um exemplo de atitude naquela adversidade.
É de se imaginar que Lafargue e Michel tivessem suas diferenças políticas. Mas havia, mais que tudo, as concordâncias. Ambos participaram da Comuna de Paris, ambos faziam parte do campo revolucionário da Esquerda francesa e, importante dizer, eram duas raras vozes europeias que já na época condenavam com veemência o colonialismo. Então esse é um encontro de muito respeito.
Aparentemente, um dos motivos da visita de Lafargue foi saber se Michel concordava com uma campanha que pedisse para ela o perdão presidencial. Como se verá, ela rejeitará tal proposta com firmeza.
O artigo foi publicado na edição de setembro de 1885 do Le Socialiste, órgão oficial do Parti Ouvrier Français (POF), primeiro partido marxista francês, fundado por Paul Lafargue e Jules Guesde.
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“Mas qual o problema? Você parece chateado, como se a visão de uma prisão o perturbasse”, Louise Michel me disse sorrindo quando entrei.
“Cidadã, é doloroso para nós vê-la aprisionada. Mas não esperava vê-la atrás de grades. Esperava conversar com você em uma sala, segurar suas mãos”.
“Meu caro Lafargue”, ela respondeu, “não há outro salão neste hotel onde os burgueses me hospedam de graça. Não estou reclamando. Para dizer a verdade, já precisei aguentar coisa pior. Na prisão, encontrei uma felicidade que nunca conheci quando estava livre; tenho tempo para estudar e tiro proveito disso. Quando estava livre, tinha minhas aulas: 150 alunos ou mais. Não era suficiente para me sustentar, já que dois terços deles não pagavam. Eu precisava dar aulas de música, gramática, história, um pouquinho de tudo, até dez ou onze da noite, e quando voltava para casa, ia dormir exausta, sem conseguir fazer nada. Na época eu teria dado anos da minha vida para ter tempo para estudar”.
“Aqui em St. Lazare eu tenho tempo para mim mesma, muito tempo, e estou feliz com isso: leio, estudo. Aprendi várias línguas. Um amigo, G…, me deu aulas de russo e já consigo ler e até escrever um pouco. Sabe que tenho uma memória excelente, a principal necessidade para o estudo de línguas. Aprendi inglês sozinha… Para conseguir fazer o que quero quando sair da prisão, preciso saber várias línguas”.
“Enquanto espero para reconquistar minha liberdade de ação, minha liberdade de propagandear, escrevo. Escrevi uns livros para crianças. Eu as ensino a pensar como cidadãs, como revolucionárias, enquanto as divirto ao mesmo tempo. Em romances, pinto de modo realista as infelicidades da vida, e tento soprar o amor da revolução nos corações dos homens”.
Falamos por uma hora e meia, esquecendo-nos do lugar em que estávamos. Conversamos sobre tudo, abordando todos os tópicos possíveis em temas atuais, eleições, literatura realista, novos romances e viagens.
“Não sinta pena de mim, sou mais livre que muitos daqueles que caminham sob o céu aberto. As mentes deles estão aprisionadas, eles estão acorrentados por suas propriedades, por seus interesses monetários, pelas tristes necessidades de suas vidas. Estão tão absortos que não conseguem viver como seres pensantes, vivos. Quanto a mim, eu vivo a vida do mundo. Acompanho com entusiasmo os movimentos revolucionários da Rússia, da Alemanha e da França, em todo lugar. Sim, sou uma fanática, e, como todos os mártires, meu corpo não sente dor quando meus pensamentos me transportam para o mundo da revolução”.
“Aprisionada atrás desses muros grossos vejo de novo minha linda viagem para a Nova Caledônia. Meu ser nunca tinha sido tão tocado pelo espetáculo da natureza como foi enquanto navegava pela imensidade sombria do oceano, enquanto testemunhei uma nevasca no Polo Sul e vi o ar branco de neve e o oceano negro devorando os flocos que caíam em sua superfície; enquanto meu coração vivia os dias sangrentos de derrota e a explosão sublime de 18 de março[1]”.
“Eu povoo a minha solidão com centenas de memórias. E meus amados Canaques[2]! Como são bárbaros os civilizados! Aprendi sua língua, sua música, suas canções, vivi entre eles, e me amaram como se eu fosse parte de seu povo. Fundei uma escola, e em pouco tempo tinha ensinado esses pequenos selvagens a ler e contar, mas tenho de dizer que inventei um método especial para uso deles”.
Louise Michel se aprofundou bastante na questão pedagógica que tanto a interessa.
“Recebi uma carta do prefeito de Nouméa[3]. Ele me pede para ir lá fundar escolas, e vou”.
Foi emocionante ouvir aquela mulher heroica falar.
“Ah, cidadã, como sentimos sua falta!”
“Mas não me fale de perdão. Não quero um perdão, nunca, por nenhum preço. Não seria um perdão que o governo lhe daria ao devolver a liberdade da qual lhe priva à força. Um revolucionário, e essa é minha opinião cuidadosamente pensada, não deveria reconhecer o direito da burguesia de condená-lo. Ele cede diante da força enorme que o esmaga, mas não abandona nenhum de seus direitos, e se, depois de tê-lo aprisionado, o governo burguês abre os portões da prisão, isso não é perdão, é restaurar a liberdade que roubou dele. O governo até deve a ele reparação pelos meses que o fizeram sofrer na prisão. Acabei de completar oito meses na prisão e espero receber indenização no dia da revolução. Pense então, cidadã, nos serviços que prestaria à causa revolucionária se estivesse livre”.
“Não, não quero um perdão. Só sairei da prisão se receber anistia. Que aqueles que me amam nunca falem de perdão: isso seria uma desonra.”
“Nenhum perdão jamais seria uma desonra para Louise Michel, que, no dia seguinte após ir embora, começará de novo sua campanha de luta revolucionária” [palavras, óbvio, de Lafargue].
“Pare, não quero ouvir nenhuma conversa de perdão. Não se esqueça de me trazer seus livros de antropologia e “A Descendência do Homem” de Darwin; lê-los vai fortalecer meu inglês. Diga aos meus amigos que estou bem. Adieu et au revoir”.
Le Socialiste, 26 de setembro, 1885
Tradução: Marina Della Valle
[1] Data, em 1871, em que aconteceu o protesto operário que deu origem à Comuna de Paris.
[2] Francês para Canacas, povo originário da Nova Caledônia e outras ilhas da Melanésia.
[3] Capital da Nova Caledônia.
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