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Por Rogério de Campos *
Não entendi a primeira história em quadrinhos do Marcello Quintanilha que eu li. Na época, 1991, eu era jornalista, da Folha de S. Paulo, e fui convidado para o júri do Salão do Humor de Ribeirão Preto. Cheguei atrasado, e os outros jurados já haviam feito uma pré-seleção do material. Em um intervalo, resolvi dar uma olhada nos trabalhos que haviam sido descartados e topei com essa HQ de uma página do Marcello Gaú, como o Quintanilha assinava na época.
Sim, entendi a história, ela fluía daquela maneira maravilhosamente natural que só o Quintanilha parece saber como fazer. Mas eu não entendi como aquela HQ podia ser criada. Não consegui localizá-la no mundo dos quadrinhos existentes. Não tinha nada a ver com os gibis industriais norte-americanos, é claro. Mas também não parecia derivar de quadrinhos europeus. Vasculhei a memória à procura de referências: Loustal, Éric Puech, alguma coisa de Annie Goetzinger… mas não era a mesma coisa. Fiquei confuso. Mas gosto de ficar confuso. Gosto de me perder em cidades desconhecidas, gosto de labirintos e gosto de me embebedar. Fiquei entusiasmado com aquela pequena HQ do Gaú/Quintanilha. Infernizei tanto os outros jurados que ele passou de descartado para ganhador do prêmio do Salão.
Logo depois, naquele mesmo ano, o Gaú ganhou também o prêmio da Bienal Internacional do Rio de Janeiro. Mas continuou um corpo estranho no mundo dos quadrinhos. Com o tempo, graças às explicações do próprio Quintanilha, fui descobrindo algumas referências: Rubem Braga, Machado de Assis, sambas e filmes antigos…
Ainda que tenha acompanhado seu trabalho autoral desde o início, primeiro como jornalista, depois como seu editor, sinto que nunca serei aquele que conseguirá explicá-lo. Fiquei bem satisfeito quando vi críticos italianos escreverem que Quintanilha é um representante do neorrealismo, como que confirmando o que eu já pensava. Mas eu já pensava isso porque o Aldir Blanc, em seu prefácio para o livro Fealdade de Fabiano Gorila (Conrad, 1999), explicou que o Quintanilha é o “Rossellini tupiniquim”. Ainda assim, continuo não entendendo: por que raios o Rossellini havia de reaparecer no Brasil?
Quando alguém diz que eu entendo de quadrinhos, não desminto. Ter fama de entendedor de quadrinhos tem sido o meu ganha-pão há muitos anos. Mas os quadrinhos de que mais gosto são justamente aqueles que não entendo.
O Robert Crumb, por exemplo. Pode-se falar na influência da Mad, do Kurtzman, de Woody Guthrie, de Charles Patton, de uma tradição cultural proletária norte-americana, do Clay Wilson, de James Gilray e até de Mark Twain, mas nada parece o bastante como explicação. De que túnel do tempo surge esse cara antigo em plena época das guitarras e dos Mad Men?
Poderíamos definir o Alan Moore como uma fusão dos gibis juvenis de aventuras com os comix underground com o mundo do rock inglês com um tanto de situacionismo misturado com Aleister Crowley. Mas explica o DO INFERNO? Não mesmo!
O caso do Gilbert Hernandez é ainda mais estranho. Eu mais ou menos consegui entender seu irmão, Jaime, quando comecei a ler as aventuras das Locas nos anos 80: era um jovem de Los Angeles fazendo histórias sobre jovens de Los Angeles. Mas Palomar, do Gilbert, foi um choque. A princípio parece algo que vem direto dos quadrinhos românticos dos anos 40 e 50, misturado com Archie e outros gibis infanto-juvenis esquecidos. Mas quando você lê, por exemplo, o SOPA DE LÁGRIMAS ou o DIASTROFISMO HUMANO, descobre que a coisa é muito mais profunda. Para começar, tem essas personagens tão reais, tão tridimensionais.
Com o passar dos anos, fui sabendo das referências. Descobri que o jovem Gilbert, além de frequentar shows de bandas como o X ou Germs, também frequentava cineclubes e era fã de filmes europeus. E resolveu fazer quadrinhos inspirado no filme Orfeu Negro (penso agora: também são referências importantes para o Quintanilha!). Mas, ainda assim, como explicar que um rapaz de vinte e poucos anos invente mulheres tão adultas, tão vividas, como Luba ou Olívia ou Carmen?
Se eu já não tivesse sido apresentado pessoalmente ao Gilbert, se não tivesse até tomado uma cerveja com ele, estaria ainda esperando a notícia bomba de que na verdade suas HQs têm sido criadas por um coletivo de velhas escritoras mexicanas de Oaxaca, filhas de B. Traven.
Quintanilha acaba de receber mais um prêmio, agora na Alemanha. Na verdade, dois prêmios Rudolph Dirks: os de melhor desenhista e melhor roteirista latino-americano (nesta categoria, os outros dois concorrentes não eram bolinho: Alejandro Jodorowsky e Marcelo D’Salete). Na semana retrasada, seu HINÁRIO NACIONAL ganhou um Jabuti já na estreia da categoria quadrinhos do prêmio. Quintanilha é um sucesso de crítica e também de vendas. E eu, depois de tantos anos, depois de publicar várias de suas HQs e seis de seus livros, sigo confuso, sem entender nada.
*Rogério de Campos é diretor editorial da Veneta e autor de O LIVRO DOS SANTOS, REVANCHISMO e IMAGERIA.
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