Final de tarde com o Diabo
Por Rogério de Campos*
Ilustração: Gilbert Hernandez
Estou à porta da igreja, que não é exatamente uma igreja, mas uma espécie de garagem transformada em templo neopentecostal.
Estou no litoral norte de São Paulo, no final de uma tarde em que a música que se ouviu das casas não era mais MPB ou rock de playboy, mas sofrência, que acompanhou a classe trabalhadora, responsável por limpar a sujeira deixada pelos turistas. Então a sofrência parou. O silêncio durou pouco: de algum lugar veio a tal música gospel, ao vivo. No início, não prestei atenção, mas depois começou a gritaria de um homem furioso ao microfone, brigando com alguém. Vim ver o que acontece.
Quando cheguei, o pastor já tinha se acalmado. Aleluia. E recomeçara a cantoria. O obreiro que faz a segurança à porta me convida para entrar. Agradeço convite, mas não, desta vez não: estou de bermuda, camiseta e chinelos. Lá dentro está todo mundo bem vestido: algumas pessoas elegantes, algumas apenas vestidas demais. Muitas dessas pessoas estavam terminando de limpar os restos dos pecados dos turistas poucas horas antes. Tomaram banho, vestiram sua melhor roupa e agora estão brilhando. Algumas sorriem para mim. Sorrio de volta, mas continuo do lado de fora, com o obreiro, assistindo.
Não é a primeira vez que vou a um templo ver o que há. Esse, em alguns momentos, parece um simulacro de show de talentos da TV. Uma por vez, algumas pessoas levantam para cantar, visivelmente felizes por apresentar aquilo que devem ter ensaiado bastante em casa. É bonito. Na sequência, os dois pastores, vestidos como imitadores do Silvio Santos, falam e falam, chacoalhando a Bíblia. Não presto atenção. Gosto quando se levanta o povo de um lado do templo e canta sua parte, e depois, quando é o povo do outro lado que canta. Todo mundo participa. O obreiro/segurança volta a me convidar a entrar, com a gentileza que um PM gentil teria. Eu novamente recuso. Então um dos pastores deixa os gritos e começa a falar um pouco mais baixo, contando um segredo ao microfone. Alerta que o Diabo pode tomar muitas formas, que é preciso ficar atento quando aparece gente que ninguém conhece… E percebo que ele está falando de mim. Eu? O Cramulhão, o Tristonho, o Pé-Preto, o Arrenegado, o Tinhoso?
E as pessoas lá de dentro parecem agora me olhar com certa desconfiança, talvez temor. O próprio obreiro se afasta um pouco. Sou o Cão, o Astuto, o Sujo, o Coisa-Ruim, o Inimigo… Será? A luz do Iluminismo não me esclarece, apenas ilumina minhas dúvidas.
Eu poderia dizer ao pastor que sou meio bonzinho, que tenho quase certeza absoluta de não ser o Diabo, mas este é o pai da mentira, quem vou convencer? Eu poderia contra-atacar e dizer que maligno é aquilo que o pastor diz. “O que sai da boca, isso sim, é o que corrompe o homem”. Mas citar Mateus pode até piorar minha situação: é bem sabido que o Canhoto conhece a Bíblia de cor.
Fico quieto. E, felizmente, o pastor não vem me exorcizar. Talvez porque seu show só possa acontecer na luz adequada do interior do templo, talvez por medo de que o Capiroto realmente exista e seja eu.
Depois de um tempo que pode ter parecido um desafio, lembro que chega a hora de fazer o jantar. Vou embora. Quando já estou longe, o pastor volta a gritar furioso lá no templo: provavelmente encontrou um diabo mais cooperativo que eu.
*Rogério de Campos é editor, tradutor e escritor. É autor de Imageria – o nascimento das histórias em quadrinhos, O Livro dos Santos, Super-Homem e o Romantismo de Aço e Revanchismo, entre outros. E criador da Veneta.
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