Marcello Quintanilha fala sobre os 10 anos de Tungstênio: “Os personagens assumem as rédeas da história”
Siga-nos
*Por Ramon Vitral
Quando o álbum Tungstênio chegou às livrarias pela primeira vez, em maio de 2014, o Brasil era outro. O país estava às vésperas de sediar pela segunda vez uma Copa do Mundo, com a seleção nacional aspirando ao seu sexto título mundial. A presidenta Dilma Rousseff estava nos últimos meses de seu primeiro mandato e fazia campanha para sua vindoura reeleição, tendo Michel Temer mais uma vez como vice. Jair Bolsonaro ainda ocupava o cargo de deputado federal pelo Rio de Janeiro.
Já Marcello Quintanilha estava sem lançar um novo álbum por aqui desde O Ateneu (Editora Ática), em 2012. Ele já havia publicado Fealdade de Fabiano Gorila (Conrad), em 1999; Salvador (Casa 21) em 2005 (relançado pela Veneta em 2022); Sábado dos Meus Amores (Conrad), em 2009; e Almas Públicas (2011). Enquanto isso, na Europa, pela editora belga Le Lombard, entre 2003 e 2012, ele publicou os sete volumes da série policial Sept balles pour Oxford, com roteiro do argentino Jorge Zentner e do espanhol Montecarlo.
Tungstênio foi celebrado pela crítica especializada pela oralidade de seus diálogos, por seu narrador onisciente e, principalmente, pela mágica narrativa de Quintanilha de comprimir e espichar o tempo como apenas os melhores quadrinhos conseguem fazer. E tem a trama, óbvio, com seus quatro personagens principais (Seu Ney, Caju, Richard e Keira), em meio a um dia de caos e tensão em Salvador que culmina em reviravoltas nas vidas de cada um.
O álbum ocupou os primeiros lugares de várias listas de melhores leituras de 2014. Foi publicado em Alemanha, Espanha, França, Polônia e Portugal. O título rendeu a Quintanilha o prêmio HQMix na categoria Roteirista Nacional em 2015. Em 2016 venceu o prêmio Fauve Polar SNCF no Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême. Sua adaptação para o cinema foi lançada em 2018, dirigida por Heitor Dhalia.
A HQ sacramentou Quintanilha como um dos maiores autores de histórias em quadrinhos de sua geração. Conversei com o autor sobre os 10 anos de Tungstênio. Falamos sobre o significado da obra para ele e a produção do quadrinho.
Quintanilha contou as origens do álbum, refletiu sobre sua relação com Salvador e definiu o quadrinho com suas próprias palavras: “Tungstênio trata da maneira como nos relacionamos com o mundo e com nós mesmos sob as condições impostas pela conjuntura socioeconômica, dando margem a que as personagens encontrem seus próprios mecanismos de interação e de superação de, digamos, vicissitudes cotidianas”.
Compartilho a seguir a íntegra da minha entrevista com Marcello Quintanilha sobre os 10 anos da chegada de Tungstênio às livrarias nacionais:
Ramon Vitral: O que Tungstênio representa para você? O livro tem algum significado em particular mais marcante para a sua carreira?
Marcello Quintanilha: Não, realmente, não. Não tenho sentimentos que diferenciem nenhuma das minhas HQs entre si, que as hierarquizem, em resumo.
Em que pese a evidente contribuição à popularização da minha proposta, Tungstênio é uma obra à qual me entreguei exatamente com a mesma intensidade que dispenso a todos os meus trabalhos, acho que porque tive a sorte de poder equacionar minha carreira de forma a ter total controle sobre a produção e me dedicar exclusivamente aos temas que me interessam.
RV: No posfácio do livro Salvador você conta da notícia que ouviu no rádio, durante sua passagem pela Bahia, e que acabou servindo de estopim para o surgimento de Tungstênio. Você pode contar, por favor, um pouco mais sobre o seu contato com essa história? Quando você decidiu transformá-la em história em quadrinhos?
MQ: Ela não foi ouvida durante minha passagem pela cidade, mas quando estava em plena realização do álbum que seria publicado pela Casa 21 (relançado recentemente pela Veneta), de volta à minha prancheta em Barcelona.
Eu adquirira o hábito de ouvir a rádio soteropolitana via internet como cama para o andamento do processo de trabalho – sempre caótico – e o comunicado foi transmitido uma tarde durante o noticiário regular. Não houve nenhum contato com a ocorrência além da fugaz locução, perdida entre uma bateria de matérias de atualidade.
Quando dei por mim, a idealização de uma trama em torno dela se havia adensado bastante, antes mesmo da finalização do livro Salvador, e os primeiros rabiscos datam provavelmente desse momento. 2003? 2004? Números são tão abstratos…
A materialidade veio depois que assisti One-Eyed Jacks [A Face Oculta, no Brasil], com Marlon Brando e Karl Malden (dirigida pelo próprio Brando depois que desavenças o levassem a despedir Stanley Kubrick), sem remasterização. A cópia era tão ruim que comprometera gravemente as cores do filme, reduzindo-as a azul e magenta, criando involuntariamente uma atmosfera rascante e insidiosa, que serviu de inspiração para os primeiros esboços do que viria a ser Tungstênio, naquela época, ainda batizada de “O que resta”.
Azul e magenta, contudo, não deram conta de abarcar a complexidade da relação entre Keira e Richard, e o projeto passou às quatro cores vernaculares. Quatro cores são o mundo, mas a história se impunha em outra faixa, mais objetiva, mais direta, em contraponto à oleosidade do enredo. Já havia uma dezena de páginas acabadas à cores, em formato 28,6 x 21,5cm quando o preto e o cinza – quente e frio – borbotaram sem cessar quadros afora, reformatando também o projeto para uma edição em 24,7 x 17,7cm.
RV: Você pode contar também, por favor, sobre o desenvolvimento da trama? Como foi a criação dos enredos entrelaçando os quatro protagonistas?
MQ: As tramas sempre se erguem segundo o arbítrio dos personagens e do quanto reivindicam de protagonismo para si, e só o determinismo acadêmico excluiria Liece e Poró do quadro de estrelas, talvez porque tenhamos menos indicações sobre suas vidas pregressas em comparação com Richard, Keira, Ney e Caju, mas me recuso a abrir mão de ambos como parte do mesmo escrete.
Creio fortemente na verdade de cada um, mesmo que suas visões de mundo sejam antagônicas a minha em muitos casos. Nunca os julgo, nunca interfiro em suas decisões.
Tampouco sigo uma regra de escrita, roteirização, paginação, decupagem e toda essa parafernália técnica, porque esse tipo de coisa me coloca em uma posição de distanciamento que considero estéril do ponto de vista criativo.
Tungstênio trata da maneira como nos relacionamos com o mundo e com nós mesmos sob as condições impostas pela conjuntura sócioeconômica, dando margem a que as personagens encontrem seus próprios mecanismos de interação e de superação de, digamos, vicissitudes cotidianas.
Desde que concebo os personagens, são eles que assumem as rédeas da história. Eles se buscam. Eles se afastam. As sendas que trilham e, consequentemente, os caminhos que obrigam a trama a seguir, são resultado de sua própria percepção, de seu próprio instinto. Interferir nessa dinâmica é impor uma presença indesejada: a minha.
O narrador é um elemento chave nessa dinâmica, porque subverte sua posição de testemunha à condição de tradutor do estado de ânimo de cada personagem, condensando a pluralidade do discurso em uma única voz.
RV: Salvador também não deixa de ser uma personagem de Tungstênio, certo? O que ficou de mais marcante e encantador para você em relação à cidade?
MQ: Salvador sou eu. Salvador é você. Salvador é todo aquele que tenha uma relação, mínima que seja, com o Brasil, porque Salvador está na gênese do que nos constituiu como nação.
Estar na cidade, pra mim, teve efeito similar a saldar uma velha dívida, a finalmente encontrar-me comigo mesmo.
Tudo que já se disse sobre Salvador é verdade. E continua sendo verdade. Qualquer obra advinda de um encontro como esse, deixa de expressar o testemunho presencial para realizar-se como verdade pessoal, o que resulta no fato de que a cidade seja traduzida nas pessoas que a (me) habitam.
RV: Quais foram as suas técnicas e materiais de trabalho em Tungstênio? O quanto essas técnicas e materiais de trabalho mudaram entre 2014 e 2024?
MQ: Não há mudança onde nunca houve estabilidade. Todas as técnicas que manipulei fazem parte do meu arsenal de ferramentas até hoje, não há nenhuma que tenha ficado no passado. Nenhuma. Simplesmente porque o passado é o único repositório das verdadeiras esperanças.
Os esboços são lápis sobre papel. Finalização em grafite, pastel oleoso, nanquim e guache sobre papel. A seguir, digitalização. Marcação das áreas em meio-tom feita com guache sobre papel, para posterior digitalização e aplicação de valores de cinza, entre 20% e 60%.
RV: E o quanto os seus interesses em relação à linguagem dos quadrinhos mudaram ao longo desses 10 anos? Aliás, houve alguma mudança?
MQ: Não, nunca houve nenhuma mudança. Meu interesse em relação aos quadrinhos permanece o mesmo desde que Brucutu [personagem de V. T. Hamlin] singrava a pré-história estampando as páginas d’O Globinho [suplemento infantil do jornal O Globo] nos anos 1970: a comunicação.
Uma comunicação fundamentada em representações do entorno brasileiro que historicamente estiveram fora do radar da manufaturação de quadrinhos no Brasil ao longo do século XX, sequestradas por um projeto político que condicionou a produção a uma métrica industrial, separando o núcleo da criação de um paradigma autóctone, em função do filtro anglo-saxão, que nunca me despertou o menor entusiasmo.
A distância em relação à primeira publicação de Tungstênio não o insere em um recorte específico de tempo, porque não há um único aspecto de sua realização que eu abordasse de outro modo nos dias atuais.
RV: Tungstênio ganhou o prêmio de melhor HQ policial no Festival de Angoulême de 2016. Qual é a sua relação com o gênero policial? Você tem alguma obra policial preferida? Você tem algum autor policial preferido?
MQ: Talvez a palavra “policial” não seja a melhor tradução para designar o Fauve Polar que contemplou Tungstênio naquele ano, porque o termo polar, tem uma abrangência muito maior, como subgênero, na cultura francesa, para além dos cânones do roman policier, do qual se distingue por associar elementos noir, de espionagem, violência, cunho social e mesmo político, sem obrigatoriamente lançar mão de uma implicação policial, aproximando-se do que se conhece como hard boiled. Ou seja, podemos dizer que um romance policial é um polar, mas um polar não necessariamente é um romance policial.
E não, não tenho nem nunca tive nenhuma relação especial com nenhum tipo de gênero. Não classifico minhas histórias a partir das premissas de gênero, nem parto dessas premissas para elaborar histórias, porque considero esse expediente brutalmente limitante e me interesso em igual medida por todas as ofertas artísticas.
Se eu fosse, no entanto, obrigado, sob o cano de um revólver, a citar um autor policial favorito, ele não poderia ser outro a não ser Raul Pompeia. Sei que parece óbvio, mas…
Minha devoção ao radioteatro de Hélio do Soveral, particularmente à série Teatro de Mistério, capitaneada pelo Inspetor Santos do Departamento de Polícia Judiciária permanece intacta — a verdade é que eu sempre quis morar na voz de Domício Costa.
Só se restringe ao humor de Agildo Ribeiro quem nunca o viu atuando fora da comédia, como em Tocaia no asfalto.
A frase “Bota as minhoca tudo pra se empanturrar de Xibiu agora…”, de Escuta, formosa Marcia, é diretamente inspirada no diálogo de Tião Medonho, após o assassinato de Grilo Peru em Assalto ao trem pagador: “Vamo jogar ele dentro dum rio… Pros peixe comer os olho azul dele”.
A crônica policial faz parte do processo histórico de urbanização do Rio de Janeiro, e relatos em primeira pessoa como os de Orestes Barbosa, ingressado na casa de detenção, ainda nos anos 1920, e as entranhas do poder coercitivo do Estado reveladas pelo repórter Pena Branca nos anos 1970, nos dão chaves importantes para entender o momento que vivemos atualmente.
RV: Considero as cores dos seus trabalhos muito singulares, identificáveis com você. Por que a opção pelo preto e branco em Tungstênio?
MQ: Quem me dera poder optar por uma coisa assim.
RV: Enquanto relia Tungstênio fiquei pensando no Seu Ney como uma figura característica dos nossos tempos. Imaginei ele por aí, atualmente, vestido de verde amarelo em frente a um quartel, por exemplo. Você também vê esse paralelo entre o Seu Ney e os eleitores do Bolsonaro?
MQ: A crise financeira de 2008 acentuou insatisfações coletivas que de alguma maneira não vinham sendo contempladas pelas sucessivas plataformas políticas a nível mundial.
No Brasil, a desigualdade e o recente processo de desindustrialização aprofundaram ainda mais esse fenômeno.
Tungstênio, cuja trama transcorre na primeira década dos anos 2000, se situa no período imediatamente anterior à institucionalização do negacionismo como força política capaz de influenciar eleições majoritárias e pesar perigosamente na balança dos votos ao colonizar frustrações sociais, até então dispersas entre a cidadania, aglutinando-as em torno a seu discurso extremista, coordenado internacionalmente, dando voz ao rancor de uma parcela expressiva da população que não se sente representada pela democracia ou sequer sabe direito o que ela significa.
Seu Ney responde pelo o indivíduo que na década seguinte crerá haver encontrado o canal para mitigar o medo que sente diante de uma sociedade em processo acelerado de mudanças e forçar o mundo a regressar a um momento histórico que lhe seja mais familiar, mais reconhecível — representado notavelmente no Brasil pela última ditadura militar — sem se dar conta de que boa parte de sua vida produtiva consistiu em amortizar os juros do desastroso modelo econômico adotado pela tropa e que a violência urbana que o oprime é herança do aparato repressivo que sustentava o regime, petrificado desde então como moeda de troca da redemocratização.
Seu Ney precisa ser conquistado. Conquistado no terreno da verdade política e da reformulação infraestrutural cujo alicerce mais frágil ainda é o saneamento básico, levando-se sempre em conta que a palavra “básico” não está acoplada à palavra “saneamento” por mera casualidade, no sentido de que possamos estender os requisitos mínimos de cidadania a todos os membros da coletividade.
RV: E como é a sua relação com a da adaptação de Tungstênio para o cinema? Como foi a sua experiência trabalhando no roteiro do filme?
MQ: Não há palavras suficientes para expressar o quanto o longa me fascina. Nem remotamente creo que sua qualidade se deva à fidelidade à obra original. Tenho certeza de que ela é fruto do talento de Heitor Dhalia e da visão tão concreta que ele já havia construído em relação ao universo da história, muito antes de emitir o primeiro grito de “Ação!”.
Recentemente, organizamos uma projeção especial aqui em Barcelona, e me impressionou constatar como o filme cresceu ao longo dos anos, como sua gramática se consolidou como algo único, como o trabalho de montagem fez explodir na tela a mecânica quadrinística. Magnífico.
* Oi. Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista, edito o blog Vitralizado, sou autor do livro Vitralizado – HQs e o Mundo (MMarte), e colunista no blog da Veneta. Minha proposta por aqui é garimpar o catálogo da editora, títulos antigos e lançamentos, entrevistar autores, analisar algumas obras, refletir sobre arte e a nossa realidade. Volto em 15 dias. Até!
Leia também, do mesmo autor:
Bryan Talbot, o David Bowie dos quadrinhos
Miguel Vila celebra o voyeurismo em Fiordilatte
Em Perfeito Estado: Juscelino Neco e a adoração ao oculto
Títulos relacionados: