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Os desenhos de corvo de Alan Moore

Uma trilha de fumaça forjada na dor

*por Diego Aguiar Vieira

Em a Voz do Fogo, romance inaugural de Alan Moore, que é tema de um clube de leitura ministrado por mim ao longo do mês de novembro, há uma personagem que, buscando negar o sinistro e o fantástico que a cercam, incorre na esperança do oblívio, de que não exista nada lhe aguardando do outro lado. Isto, apenas para ser consumida pelas mesmas chamas que arde através dos tempos, acompanhando uma cidade ao longo de sua árdua formação.

Nas palavras do próprio autor, A Voz do Fogo “É sobre ressuscitar os mortos para que nos contem o que sabem. É uma ponte, uma passagem, um ponto gasto na cortina entre o nosso mundo e o submundo, entre a argamassa e o mito, o fato e a ficção.”

Nascido em 1953, na cidade de classe trabalhadora de Northampton, Alan Moore cresceu pobre e teve seu direito à educação negado aos dezessete anos, quando foi pego vendendo LSD para os colegas e o diretor da escola escreveu uma carta recomendando a todos os colégios próximos que o impediu de seguir os estudos. Autodidata, cavou seu caminho nos quadrinhos através de uma série de tiras, aos poucos conquistando espaço em publicações britânicas, como Warrior, 2000 AD e os quadrinhos da Marvel, acabando por chamar a atenção de editoras do outro lado do Atlântico, sendo então chamado para trabalhar com o personagem Monstro do Pântano, na DC Comics, onde rapidamente chamou atenção. Não demorou para que o autor pudesse arriscar em projetos mais ousados, como Watchmen, ou a conclusão de sua ópera anarquista, V de Vingança.

Com o fim tumultuado de sua parceria com as duas grandes editoras estadunidenses, Marvel e DC, Moore voltou-se por alguns anos para projetos mais sofisticados, como Lost Girls (que levou dezesseis anos para ficar pronta), Do Inferno (produzida e publicada ao longo de dez anos) e Big Numbers (abruptamente encerrado depois da publicação da segunda edição). Nesse meio tempo, fundou uma editora, se divorciou e quase faliu.

Nos cinco anos que levou para terminar A Voz do Fogo, Moore jurou nunca mais escrever quadrinhos de super-heróis de lado, mas acabou voltando, recrutado pela Image Comics, que lhe pagava uma bela bufunfa. Ainda que esses trabalhos não sejam os mais lembrados, ali se encontram as sementes dos seus empreendimentos mais arriscados e bem sucedidos do premiado selo America’s Best Comics, que só publicava quadrinhos escritos por ele.

Mas em 1996, por mais que fosse premiado e reconhecido no mundo dos quadrinhos, o lançamento de A Voz do Fogo não chamou tanta atenção quanto se esperava, levando alguns anos para que ganhasse um merecido status de cult. Com doze capítulos e ambientado ao longo de seis mil anos, o livro tem uma estrutura sofisticada onde cada capítulo também pode ser considerado um conto por si só, sempre tendo como narrador um personagem específico de cada período.

O primeiro capítulo do livro, O Porco do Bruxo, se passa no ano 4000 a.C., e tem como protagonista um garoto com um vocabulário limitado em cerca de 400 palavras e que, entre outras coisas, parece ter visões. O título original do capítulo, Hobs Hog, o Porco do Travesso, ou do Duende, é uma referência a uma expressão tradicional de Northampton, referente àqueles que receberão a última refeição antes de serem sacrificados. Logo, para quem é da cidade, talvez o destino do protagonista desse capítulo já estivesse muito claro desde o início. Mas não para nós, que vamos sendo atropelados por visões e símbolos, tumores que se repetem ao longo da narrativa transrealista e psicogeográfica de Moore em sua carta de amor por sua cidade natal.

O narrador é um indivíduo esquizo. Na concepção de Deleuze e Guattari, esquizo é aquele que concebe a realidade como um processo menos estático, sempre em movimento. A visão dos cavalos-olhos-de-fogo e da raça de Urk, os cães-espíritos, seres que vivem abaixo do mundo, atravessando a terra fina, toras que viram porcos, a terra que quer puxar seu pé porque o da sua mãe não foi enterrado, etc, indicam um tipo de clarividência, ou ainda que ele está destinado a ser uma vítima. Logo nesse começo, por meio dessa névoa de realidade formado pela linguagem e pela própria dificuldade do garoto de lidar com toda informação que recebe, notamos o modelar do mundo: o povo-que-anda contra o povo-que-fica, por exemplo.

A sociedade começa a tomar forma em toda sua truculência, seus abusos e sua busca incessante pelo controle. Já no segundo capítulo, o que vemos é a constatação de que aquela aldeia começando a tomar forma no primeiro capítulo, agora segue baseada nas mesmas premissas: um falso sacrifício que requer um sacrifício real, um filho pelo outro, um pé pelo outro… uma mulher morta embaixo da ponte como proteção para o lugar.

A partir daí, Moore também passa a brincar com as convenções do gênero: o segundo capítulo, Os Campos de Cremação, e o quarto, A cabeça do Diocleciano, seguem as deixas de um romance de suspense, no primeiro caso com uma protagonista que, de chofre, sabemos se tratar da antagonista (e que, do alto de sua arrogância, se descobre enredada em uma trama muito mais perigosa do que ela se julga), e, no outro, uma história noir com direito a ser um detetive e tudo.

Como o fogo, essa história se espalha em várias direções. Gilles Ivain, que fez parte do movimento situacionista com Guy Debord, disse que “todas as cidades são geológicas, e não podemos dar três passos sem encontrar fantasmas armados com todo o prestígio de suas lendas.” O situacionismo e, consequentemente, a psicogeografia, é um movimento anarquista, desafiador da noção de titularização do espaço e do tempo. A Terra pertenceu a outros seres antes, sem respeitá-los, sem conhecer suas trajetórias e entender como puderam afetar os lugares por onde passaram, não há como existir plenamente no presente. Isso é uma aproximação filosófica, mas também política.

Quem primeiro levou essa consciência para a poesia e, consequentemente, para o campo da magia, foi Iain Sinclair, a quem o Moore considera como o maior escritor vivo, e que na década de 70 escreveu o poema Lud Heat, um texto tortuoso e de investigação holística sobre as seis igrejas de Hawksmoor em Londres. As mesmas igrejas citadas pelo Dr. Gull em Do Inferno. Não à toa, durante a produção dessa HQ, não só o Moore descobriu a psicogeografia, mas também se descobriu um mago, quando escreveu que “o único lugar onde deus existem sem dúvida são em nossa mente, onde são reais até não poder mais, em toda sua grandiosidade e monstruosidade”. A abordagem tida com Londres é a mesma daquela que vemos em A Voz do Fogo e Jerusalém com Northampton.

Das muitas lições de A Voz do Fogo e, principalmente, Jerusalém, esta talvez seja a mais importante: aprender sobre o presente enquanto se olha para o passado. E quando se usa a Arte para isso, isto é, a Magia, esse processo pode ser bem interessante.

A seguir: as imagens recorrentes em A Voz do Fogo, transcendência, bruxaria e as cruzadas, além de um olhar sobre o que teria sido o primeiro livro de Alan Moore, perdido no banco de trás de um táxi em Londres.

Diego Aguiar Vieira é mestre em Comunicação, Cultura e Educação em Periferias Urbanas (FEBF-UERJ), escritor, tradutor e editor na Mambembe Livros. Traduziu autores como H. P. Lovecraft, Ambrose Bierce e James Joyce. Como editor, lançou obras de Gertrude Stein e David Soares, além de ter resgatado a HQ Retrato Falado, de Lor, que rendeu uma indicação ao HQ Mix de melhor publicação de clássico. Também é autor de Pássaros Artificiais, Macuconha, Crônicas de Calavera: Memento Mori, Locadora do Farol e O Apocalipse Amarelo: Uma Torre para Cthulhu (finalista do prêmio Aberst 2024). Vive em Belo Horizonte, é casado e tem uma gata.

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