JC, O VAMPIRO – versículo V
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De como Yeshua sobreviveu ao Gólgota e outras maravilhas
Por Rafa Campos Rocha *
– Você não acha que já dormiu o suficiente? – Pantera me ajudou a sentar na poeira, preocupado – Olha aí! Quase quebrou o seu nariz novinho!
– O que aconteceu? – perguntei, colocando-me de pé, trêmulo. Na verdade, coloquei-me de pé em um salto.
– Você bateu no Gólgota. Nunca tinha visto ninguém bater em um morro.
– E eu nunca tinha visto uma língua como a sua… Espere, eu não sonhei tudo aquilo, sonhei?
– Não. E você ainda tem que tomar um banho. Cuidado por onde anda, esse morro quase matou você.
– Não vou dar outra oportunidade para ele – disse, lembrando-me aos poucos de como me movimentar na minha nova condição.
– Vamos – gritou novamente Pantera – o último a chegar é mulher do Sacerdote de Osíris!
Pantera disparou morro de pedra acima, e eu o segui, com um pouco de dor no meu “nariz novinho”. Notei, de passagem, que havia uma rachadura na grande pedra onde eu havia me chocado. Eu parecia realmente ser, agora, um sujeito difícil de matar.
Atingimos o pico com facilidade e do outro lado já víamos o Rio Jordão. Começamos a descida com a mesma facilidade que a subida. Eu cada vez mais inteirado de meu novo peso, e da nova força de meus membros.
Soube, depois, que eu praticamente não tinha mais órgãos internos. A organização do meu corpo fora simplificada, minhas tripas haviam secado e se transformado em uma única massa compacta, quase indestrutível. Agora, eu era feito de fibras, músculos, pele e cérebro. Os pelos de meu braço pareciam grossos como os das cabras, e meus pés não sentiam as pedras pontudas da descida. Estava exultante.
Passamos correndo por alguns camponeses, que mal nos notaram devido a nossa velocidade. Os habitantes das poucas casas do caminho entraram assustados, logo que passamos. Eu não vi isso, porque não me atreveria a olhar para trás de novo, mas imaginei. Ou melhor, soube por meio de meus novos e finíssimos instrumentos de percepção.
Chegamos com o sol a pino e mergulhamos alegremente no rio. E isso vale uma explicação. Vampiros realmente não gostam do sol. A luz do dia denuncia a estranha pele grossa e sem fissuras que cobre todo o nosso corpo. Além disso, costuma ser mais fácil devorar pessoas durante a madrugada, quando a maior parte delas dorme. Bom, retornando à minha história…
Deixei a água correr pelo meu corpo e esfreguei ferozmente a craca que ainda teimava em manter-se colada à minha nova pele. Lavei meu cabelo como pude, ele parecia ainda mais grosso do que já era. Pantera, encharcado, caminhou como uma criança para a margem e tirou seu elmo e todo o seu aparato de decurião. Nu, ele era ainda mais impressionante do que vestido. Em suas costas, o enorme desenho de algo próximo a um monstro marinho – ou um inseto monstruoso, ou nenhum dos dois – cobria inteiramente suas espáduas, cuja largura podia abrigar uma refeição para quatro pessoas. O desenho das patas, ou tentáculos desse monstro, se prolongavam cobrindo os braços e as pernas. O monstro desenhado parecia usar uma armadura, que se tornava, por continuidade lógica, a armadura do próprio Pantera. Uma estranha obra de arte que, não fosse pelos relevos desagradáveis na pele grossa, poderia ser uma bela pintura. Vim a saber depois que nem tudo naquela tatuagem corporal era apenas estético, mas tinha também um sentido hermético de proteção, físico e energético (que era como Pantera tratava os fenômenos mágicos de que participaríamos dali em diante).
Pantera sugeriu que eu usasse a areia molhada para esfregar o cabelo e outras partes, e eu acatei a sugestão. Quando finalmente me senti limpo, posicionei-me para boiar no rio, perto da margem, onde a correnteza era quase inexistente. Fechei meus olhos e relaxei. Senti o fundo do rio em minhas costas e abri os olhos, assustado. Havia afundado. Levantei-me e olhei Pantera, meu novo tutor para os movimentos mais simples da vida.
– Ah, sim, esqueci de dizer! Não boiamos dessa forma. Somos muito densos. Mas com o tempo posso ensinar você a usar a força gravitacional ao seu favor.
Tudo voltou. O massacre de minha aldeia, a morte de minha mãe, minha morte. Caminhei trêmulo até a margem e me sentei, nu e angustiado.
– O que foi agora? – Pantera brincava de afastar a água fazendo um movimento com as mãos. Notei que a água demorava um pouco a ocupar o lugar onde estava, como se fosse uma argila muito macia, e não água.
– Desculpe se eu ainda pareço um pouco confuso por ter morrido e ressuscitado.
– Não se sinta mal – Pantera não era muito sensível a interjeições emocionais de outrem – eu devo ter demorado mais tempo do que você para me acostumar.
Minha angústia solitária foi interrompida por uma cantoria, um pouco adiante. Nos agachamos na água, instintivamente, e andamos semi-submersos até alguns juncos da beira do rio, para encontrar a fonte do ruído inusitado.
Uma pequena multidão cantava à beira d´água, enquanto um sujeito parecia regê-los, mergulhado no rio até a cintura. O sujeito, apesar de parecer à vontade dentro do rio, não devia ver água há um bom tempo. Seu cabelo lembrava um imundo ninho de falcão, encimando uma cabeça de cor inidentificável, de tão encardida. A barba do homem havia se tornado um restolho, com pedaços de terra e vegetação entrelaçados. O homem vestia somente uma espécie de túnica de pele animal, que pode ajudar na friagem dos picos mais altos, ao Norte de Jerusalém, mas transforma a pessoa em uma cloaca fedorenta no calor do deserto hebreu.
Mesmo assim, o homem parecia comandar aquela pequena multidão, que o olhava embevecida.
Não era somente o povo pobre da região que se rendia ao estranho maestro. Falantes do hebreu misturavam-se à laia aramaica, encostando seus nobres e delicados ombros nos braços fustigados do populacho. O espetáculo se tornou ainda mais inusitado quando as pessoas, uma a uma, sempre cantando, começaram a entrar no rio, com a água pela cintura. A primeira pessoa fechou os olhos, e o estranho selvagem a enfiou no rio, por alguns segundos. A multidão não parou de cantar, mas elevou o tom quando a vítima voltou à superfície, encharcada, mas viva e exultante.
– É um desses messias do deserto – disse com um esgar de desgosto Pantera – eles infestam o Jordão com esses rituais de purificação.
Prestei atenção na aglomeração histriônica e vi em abundância algo que eu não tinha, em absoluto: roupas. Resolvi, pela primeira vez desde que conhecera Pantera, assumir alguma iniciativa.
– Pantera – disse, aproximando-me – quanto tempo nós…nosso tipo… quanto tempo acha que conseguimos permanecer embaixo da água?
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* Rafa Campos Rocha é autor de Lobas
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