Gilbert Shelton sobre Wonder Wart-Hog: “Os quadrinhos mainstream são tão estúpidos que há uma grande necessidade de um antídoto”

Por Ramon Vitral

Em uma das aventuras do Wonder Wart-Hog em O Melhor dos Super-Heróis! Wonder Wart-Hog, o javali criado por Gilbert Shelton precisa encarar um cidadão de bem, com um chapéu com a bandeira de seu país, autoproclamado o Superpatriota. Rumo à sede do governo local, o sujeito de trajes espalhafatosos avisa: “Pretendo enforcar o presidente, o vice-presidente, o Congresso e a Suprema Corte, porque eles não passam de fascistas traiçoeiros e comunas subversivos”.

Depois, o mesmo indivíduo pergunta para o Wonder Wart-Hog: “A propósito, Sr. Hog… Quantos comunistas o senhor matou esse mês?”. O javali hesita e o Superpatriota ordena aos seus asseclas: “O porco deve ser comuna! Lincha!”.

O embate entre o javali super-herói e o Superpatriota poderia ser uma piada com os ataques golpistas dos minions do ex-presidente Jair Bolsonaro a Brasília em 8 de janeiro de 2023, mas o quadrinho foi publicado na edição de novembro de 1962 da revista Texas Ranger. A HQ consta no álbum recém-publicado pela editora Veneta, com tradução de Jotapê Martins, reunindo as aparições mais célebres do personagem de Shelton.

Seis décadas após sua estreia na revista Bacchanal em março de 1962, o Wonder Wart-Hog é mais atual do que nunca.

“Os quadrinhos mainstream são tão estúpidos que há uma grande necessidade de um antídoto”, me disse Shelton, de Paris, onde vive, sobre a relevância atemporal de seu super-herói.

Hoje aos 84 anos, Shelton tinha 22 anos quando concebeu o Wonder Wart-Hog. O personagem antecedeu o surgimento das outras duas criações que fizeram sua fama, os Fabulous Furry Freak Brothers e a Gata do Fat Freddy. 

O autor lembrou da reação inicial dos leitores à primeira aparição de seu super-herói: “Achei que tinha uma boa ideia com o Hog, mas a reação dos leitores foi melhor do que eu pensava quando a tira foi publicada pela primeira vez na revista Bacchanal”.

Estatura de Chaplin

É difícil dimensionar a importância e o impacto de Shelton para a história das HQs. Robert Crumb é o mais conhecido representante da lendária geração de quadrinistas underground norte-americanos dos anos 1960 e 1970, mas Shelton talvez seja o mais celebrado entre seus pares. Aliás, a quarta capa de O Melhor dos Super-Heróis! Wonder Wart-Hog vem com uma fala de Crumb sobre seu amigo: “Shelton é o cara legal! Eu sou o babaca”.

O quadrinista inglês Alan Moore fez coro a Crumb em depoimento ao site da editora britânica Knockabout Comics: “Gilbert Shelton é o mais perto que os quadrinhos chegaram de produzir um gênio cômico natural da mesma estatura de Chaplin ou Tati (…) Ele é realmente um dos maiores e mais sublimemente engraçados talentos que o meio dos quadrinhos tem a oferecer”.

As palavras gentis do autor de Do Inferno ecoam também a gratidão de Moore a Shelton. Na oitava edição de sua revista Rip Off Comix, lançada em abril de 1981, o autor norte-americano apresentou aos seus conterrâneos vários autores britânicos até então inéditos nos Estados Unidos, entre eles um jovem Moore. Com o passar dos anos, ele se tornou um dos grandes discípulos de Shelton como crítico à ideologia fascista e reacionária intrínseca ao imaginário dos super-heróis.

O autor de Jerusalém já expôs mais de uma vez sua crença no “imenso papel” do gênero na “infantilização da cultura ocidental”: “O super-herói hoje só pode ser uma figura invulnerável de compensação para uma nação com medo de dormir sem uma pistola na mesinha de cabeceira ou uma representação orgulhosa do excepcionalismo norte-americano. Imagino que eles só vão morrer ou perder o apelo quando morrer a necessidade psicológica de super-heróis”.

Shelton me respondeu orgulhoso quando perguntei se ele compartilha das ideias de seu pupilo: “Sim. O Alan Moore é um cara brilhante. Eu fui seu primeiro editor nos Estados Unidos”.

Baixo custo

O álbum da Veneta dedicado ao Wonder Wart-Hog tem prefácio do autor, editor e pesquisador Paul Buhle, seguido por 168 páginas de quadrinhos no tradicional preto e branco que caracterizou a geração underground que tem em Shelton um de seus expoentes.

“Ser publicado em preto e branco foi uma escolha fortuita para editoras underground, tornando os comix identificavelmente distintos do mainstream, mas é claro que o motivo foi o baixo custo”, me disse Shelton sobre um dos padrões estéticos que marcou seu estilo.

No caso, os comix citados por Shelton foram como os trabalhos dele e de seus colegas acabaram sendo identificados. Eram obras alternativas à ingenuidade pueril das HQs de super-heróis supervisionadas pelo conservadorismo do Comics Code Authority – código de autocensura imposto pela Associação Americana de Revistas em Quadrinhos dos Estados Unidos em prol da manutenção dos “bons modos” nos quadrinhos locais.

Perguntei a Shelton sobre qual ele considera a maior contribuição de sua geração para o mundo das HQs: “O underground conscientizou as editoras do valor da obra de arte original, em vez de jogar o material no lixo”.

Já sobre a popularidade crescente e ininterrupta dos super-heróis ao longo dos últimos 86 anos, desde o surgimento do Super-Homem, em Action Comics #1, em abril de 1938, Shelton não tem o que dizer: “Você terá que perguntar a um psicólogo sobre isso”.

Em contraste ao bom-mocismo do último filho de Krypton e seus colegas de capa e cueca por cima das calças de Marvel e DC, o javali de Shelton não tem nada de ingênuo em relação às suas atividades super-heroísticas: “Tem grana na jogada, véio! E, além do mais, eu estampo minha foto nos jornais todo dia, o que me deixa famoso de montão. E se tu é famoso, descola um bocado de garotas americanas de pernas bem torneadas”.

Jazz bebop

 

A revista Rip Off Comix de Shelton foi uma das publicações da Rip Off Press, editora e agência de quadrinhos criada por ele e três colegas em São Francisco no fim dos anos 1960. Foi por ela que saiu grande parte de seus trabalhos com o Wonder Wart-Hog, os Furry Freak Brothers e a Gata do Fat Freddy.

Sobre suas práticas e rotina na época, ele me contou: “Ao longo dos anos, usei uma série de técnicas de desenho, mas acabei optando pelas canetas Rapidograph porque podia carregá-las no bolso. Na maioria das vezes eu ia trabalhar na Rip Off Press, onde havia ótimas mesas de desenho e pessoas com quem conversar”.

Shelton teve suas contribuições ao meio dos quadrinhos reconhecidas em 2012, quando foi incluído no Hall da Fama do Prêmio Eisner. Nos últimos anos ele acabou se distanciando das HQs. “Não leio muito histórias em quadrinhos”, me contou o autor. “Sei que a linguagem evolui e que os quadrinhos são provavelmente a vanguarda, mas estou principalmente interessado em me fazer entender. Eu leio principalmente não-ficção”.

“Não acompanho música contemporânea”, ele me disse sobre sua outra grande paixão. “O que gosto de ouvir é a minha antiga coleção de jazz bebop dos anos 1950”.

 

 

Oi. Meu nome é Ramon Vitral, sou jornalista, edito o blog Vitralizado, sou autor do livro Vitralizado – HQs e o Mundo (MMarte), e colunista no blog da Veneta. Minha proposta por aqui é garimpar o catálogo da editora, títulos antigos e lançamentos, entrevistar autores, analisar algumas obras, refletir sobre arte e a nossa realidade. Volto em 15 dias. Até!

 

 

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